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Descobri que era índio quando fui pra escola

Foto: André Venâncio
Foto: André Venâncio


“Eu sei que vocês esperavam que eu estivesse quase pelado, com o corpo todo pintado e com um cocar na cabeça, e dançando a música da Xuxa”, disse o bem humorado escritor Daniel Munduruku – trajando calça jeans e camiseta - ao público presente no Espaço Imaginário, que o Sesc em São Paulo montou na 23ª Bienal Internacional do Livro de São Paulo. Sentados nos simpáticos bancos de papelão – belos exemplos da técnica manual casa de abelha – haviam adultos, crianças, brancos, negros, ruivos. Todos aguardando o bate-papo com o índio escritor, abaixo da imensa lua cenográfica, presa no teto do Anhembi.

“Eu não sou índio e, pra mim, no Brasil não há índios”, continuou Daniel, divertindo-se com as diferentes reações do público. “A palavra índio, pelo menos no Brasil, aparece carregada de estereótipos e nenhum deles me representa. Eu não sou preguiçoso, não sou selvagem, traiçoeiro. Eu não sou índio, porque eu não sou um apelido. Quando as pessoas dão apelidos pras outras, é porque se sentem superior à elas e índio, pra mim, é um apelido. Eu tenho tradição. Sou de um povo e tenho cultura. Não sou índio, sou um Mundurucu”, conta referindo-se ao povo habitante do sudoeste do Pará.

Graduado em filosofia, história e psicologia, Daniel tem mestrado em antropologia social e é Doutor em educação pela Universidade de São Paulo. Autor de livros infantis, Daniel contou ao público, como se tornou escritor:

“Eu descobri que era índio quando fui à escola pela primeira vez. Antes disso, as pessoas me chamavam pelo nome. Quando cheguei na escola, onde usei roupas pela primeira vez – uniforme, farda, fardo – alguém gritou: “- Olha o Índio!”, e eu fiquei procurando. Na escola, descobri que o que era diferente era tratado com inferioridade. Era como se a gente nascesse errado, e a escola tivesse que nos consertar. Mudar o cabelo, mudar a cor da pele. E isso era tão forte, que eu não queria mais ser índio. Não queria mais ser Mundurucu. Eu queria ser branco. Foi então que meu avô me pegou pela mão e me ajudou a resgatar meu orgulho. Quando me formei, no 2º grau, queria levar a diante as histórias que meu avô me contava e, por isso, me tornei professor: quem professa a fé no ser humano. Eu queria que as pessoas entendessem o que é pertencer a um povo tradicional e aí comecei a contar histórias para os alunos... As histórias do meu povo. Até que um dia, uma criança me perguntou onde ela podia ler aquelas histórias. Aquilo foi um sinal pra mim... Eu precisava escrever”.

Da decisão de se tornar escritor até a publicação de seu primeiro livro, foi uma longa jornada. Rejeitado por várias editoras “por escrever mal”, Daniel conseguiu a confiança de uma: “-Você escreve mal, mas suas histórias são muito boas. Podemos trabalhar nisso”. Sua primeira publicação, Histórias de Índios, foi lançado pela Cia das Letrinhas, na Bienal do Livro, em 1996. Hoje, Daniel tem mais de 40 livros, por 15 editoras diferentes. Aprendeu a escrever bem.

Perguntado sobre as interferências culturais na tradição indígena hoje, Daniel foi direto: “Se o indígena quer comprar um Ipod, Ipad ou um Itudo, ele pode comprar. Ter as coisas não desqualifica o pertencimento de um indivíduo ao seu povo”.

Após o bate-papo, a EOnline quis saber quando Daniel se interessou pela leitura:
“Meus pais me prepararam para ser uma pessoa da floresta e, portanto, eu tinha que saber ler o livro da natureza, o que ela me contava, o que ela escrevia pra mim. Eu aprendi a ler pegadas de animais, galhos quebrados. Essa foi a minha primeira leitura, que era o que eu precisava. Só fui ter acesso à literatura no meu 2º grau. Mas eu sempre fui um péssimo leitor. Eu leio bastante, mas não sou um fissurado por leitura. Longe de trocar o pôr-do-sol por um livro. Eu gosto mesmo é do pôr-do-sol, de sentir o vento no rosto. Eu gosto de ficar na rede balançando, ouvir música da natureza, ver a chuva caindo. É disso que eu gosto. Da leitura? Gosto também, mas longe de ser um leitor voraz como minhas filhas, por exemplo. Não sei com quem aprenderam, mas não foi comigo, certamente. Eu sei é fazer poesia. Não sei ler livros”.


 

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