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Wes Anderson
Por Sérgio Alpendre
Com um curta de 13 minutos chamado Bottle Rocket, em preto e branco, co-roteirizado e interpretado por Owen Wilson, que conta também com a presença de Luke Wilson (irmão de Owen) dividindo o protagonismo, Wes Anderson desponta como uma promessa no cenário independente americano.
O curta chamou a atenção de James L. Brooks e Polly Platt, e assim Anderson teve a chance de expandi-lo para um longa com o mesmo nome, traduzido aqui genericamente como Pura Adrenalina (1996). James L. Brooks é roteirista de sucesso (é um dos responsáveis pelo seriado Os Simpsons), produtor e diretor bissexto (de Nos Bastidores da Notícia e Melhor é Impossível, por exemplo). Polly Platt foi casada com o diretor Peter Bogdanovich entre 1962 e 1972, e depois se tornou produtora (de, entre outros filmes, Nos Bastidores da Notícia). Com padrinhos assim, o caminho já estava pavimentado.
Começa então a história cinematográfica de um dos principais nomes do cinema independente americano dos últimos anos. Seu nome foi imediatamente catapultado a darling de certa crítica e da cinefilia americana (Martin Scorsese adorou Pura Adrenalina), atingindo em breve outras cinefilias e acumulando um séquito de atores e técnicos que o acompanham não só como fieis escudeiros, mas como contribuintes ativos de suas buscas.
No meio desse séquito estão atores como os irmãos Wilson (principalmente Owen), Jason Schwartzman, Angelica Huston e Bill Murray; além de técnicos como o diretor de fotografia Robert Yeoman, a quem Anderson deve agradecer pelas composições visuais, e o montador David Moritz (parceiro constante até A Vida Marinha com Steve Zissou, de 2004).
São apenas oito longas, cerca de 800 minutos que compõem um corpo artístico que, goste-se ou não, representa as questões de toda uma geração de cineastas que iniciaram carreira nos anos 1990. Ao lado de Wes Anderson, cineastas como David Fincher, Darren Aronofsky, Paul Thomas Anderson e Christopher Nolan buscaram esse espaço herdado dos diretores da Nova Hollywood (De Palma, Scorsese e Coppola na linha de frente) e da geração dos anos 80, representada ou por autores iconoclastas que vingaram por um tempo para depois caírem num injusto ostracismo – casos de John Landis e Joe Dante – ou por diretores que logo se serviram das glórias dos blockbusters, a despeito da boa qualidade da maior parte de seus filmes – Robert Zemeckis e James Cameron seriam bons exemplos dessa ambição. No final da década de 80, surge Hal Hartley, com o qual Anderson desenvolve uma relação de continuidade estética. Hartley ocupou espaço nobre do cinema independente com A Incrível Verdade (1989), Confiança (1990), Simples Desejo (1992) e Amateur (1994), caindo miseravelmente após este último, com os pequenos acertos posteriores sendo encobertos pela mediocridade e subestimados por crítica e público.
Da geração de diretores que despontaram na segunda metade dos anos 1990 e hoje, exageradamente, já ocupam o confortável trono dos objetos de culto, sendo influenciadores, mais do que influenciados, Wes Anderson é o de estilo mais marcante. Bebe na fonte do cinema moderno europeu dos anos 1960, sobretudo (e assim como Hartley bebia) de Jean-Luc Godard, ponta de lança da Nouvelle Vague francesa, mas também de Martin Scorsese, diretor que filtrou essas influências e misturou-as com a tradição do cinema clássico americano.
A presença de Seymour Cassel (um dos atores preferidos do diretor – e também ator – John Cassavetes) em três de seus longas serve para reforçar sua filiação com a história do cinema indepentente americano.
Sua câmera lenta funciona como elemento cool, usado para criar um charme especial a certas sequências. Nesse sentido, está mais próxima de Wong Kar-wai do que de Brian De Palma, sem esquecer a forte semelhança com os videoclipes mais estilizados que surgiram nos anos 1990. A descrição pode soar como afetação, mas o efeito geralmente funciona em seus filmes.
A maneira como os personagens encaram diretamente a câmera, quebrando a quarta parede com feições inexpressivas, remete ao efeito Kuleshov (em que um mesmo rosto sem expressão parece reagir diferentemente conforme os planos que são inseridos – uma criança brincando, um prato de comida, uma briga, por exemplo), mas funcionam também como elemento de charme, prevalecimento do estilo sobre o drama.
Existe ainda um visual de desenho animado, que Anderson persegue desde Os Excêntricos Tenenbaums (2001), chegando ao ápice (a depuração que vem depois dos equívocos) com o último longa, O Grande Hotel Budapeste (2014), após ter experimentado com animação de verdade em O Fantástico Sr. Raposo (2009).
É comum a ideia de que seus melhores longas são o segundo e o terceiro, Três É Demais (1998) e Os Excêntricos Tenenbaums, respectivamente. O segundo representa um salto incrível em relação à estreia. Porque Pura Adrenalina revela um diretor ainda inseguro, indeciso entre o desejo pelo plano-sequência e a decupagem mais fragmentada, hesitando em câmeras baixas esquisitas e momentos mal escolhidos para o uso da câmera lenta. O que o filme tem de bom é a química entre os irmãos Wilson (revelados para um público maior justamente com este longa), e o nonsense que pontua a narrativa. Um dos maiores momentos é aquele em que Luke Wilson conversa com sua namorada paraguaia enquanto Owen Wilson apanha de um mexicano no bar. É um uso bem eficaz da profundidade de campo, que Anderson aprimoraria nos filmes seguintes até o limite da vulgaridade. De todo modo, o longa de estreia representa um claro progresso em relação ao curta Bottle Rocket. As situações são melhores desenvolvidas, e é bem mais humorado.
Em Três é Demais, estamos no terreno das comédias colegiais tão tipicamente americanas – sobretudo desde os anos 80. É o filme inaugural da parceria do diretor com Jason Schwartzmann, espécie de intérprete ideal para as frustrações da juventude intelectualizada americana. Ele é Max, um menino de 15 anos dotado de uma inteligência incomum, mas incapaz de se dar bem nos estudos. Apaixona-se pela professora vivida por Olivia Williams, que por sua vez é objeto do desejo de Bill Murray. Em contrapartida, Max esnoba uma charmosa e igualmente bem dotada garota asiática. Suas desventuras o levam a se machucar, física e espiritualmente, e ele chega até a ser expulso do colégio que dá nome ao filme (título original, no caso): Rushmore.
Wes Anderson consegue estabelecer seu estilo espertinho sem cair na afetação. Os truques existem por necessidade dramática, ou seja, estão de acordo com as invencionices do protagonista, célebre entre professores e alunos por suas peças teatrais. É o contrário do que acontece com a maior parte dos diretores maneiristas deste século. Nos filmes deles, os truques parecem se impor às tramas, esvaziando as possibilidades dramáticas.
Anderson conseguiu chegar à equação que a maioria de seus continuadores não é capaz de solucionar: mesclar uma boa dose de influências (de cinema e de cultura pop) num contexto em que os personagens evoluem de maneira imprevisível, mas dentro de uma construção sólida e razoavelmente lógica.
Há um belo drama por trás das maluquices inventadas pelo diretor, como fica claro também em Os Excêntricos Tenenbaums, a maior reunião de astros de sua carreira: Angelica Huston, Bill Murray, Ben Stiller, Saymour Cassel, Gwyneth Paltrow, Danny Glover, e, acima de todos, num trabalho realmente magnífico (o que para ele não é novidade), Gene Hackman.
Temos aqui uma família disfuncional, que percorre um caminho de erros até uma superação coletiva. As peças vão se encaixando, e os Tenenbaums vão nos conquistando com suas falhas e manias. Vemos o maníaco por segurança que envolve os próprios filhos em suas neuroses; a filha adotiva que se sente rejeitada e rejeita, por sua vez, seu próprio talento; o tenista fracassado que não sabe lidar com o amor que sente pela irmã adotiva; o malandro genial composto por Hackman; seu fiel escudeiro indiano, o carismático Pagoda; o gentleman negro que cobiça a senhora Tenenbaum, o escritor drogado que não sabe o que quer da vida. São arquétipos da sociedade doente, trabalhados num mosaico sobre os relacionamentos humanos, familiares (de sangue ou de escolha), e os traumas de todos nós.
Os Excêntricos Tenenbaums ensaia algo que Tarantino viria a realizar três anos mais tarde, com Kill Bill Vol.1: um filme pensado como uma sinfonia, com a música crescendo em momentos específicos (o voo de um falcão, a introdução de um novo capítulo, a decisão trágica durante o fazer a barba), e as vozes como instrumentos dentro de uma grande ópera pop. Anderson, como Tarantino, faz cinema com sua coleção de discos do lado. Mas essa é a maior semelhança entre os estilos geralmente singulares dos dois diretores.
Após Tenenbaums, o diretor parece indeciso entre aprofundar no caminho cromático aprimorado nos três primeiros longas ou buscar algo novo - a estética desenho animado de Hannah Barbera, por exemplo, que se insinua em Os Excêntricos Tenenbaums e se fortalece nos trabalhos seguintes. Os filmes, tanto os bem-sucedidos – Viagem a Darjeeling, O Fantástico Sr. Raposo – quanto os mais irregulares – A Vida Marinha com Steve Zissou, Moonrise Kingdom – sofrem um tanto com essa indecisão, sanada, ao menos parcialmente, com o envolvente O Grande Hotel Budapeste.
O caminho a seguir não sabemos ao certo, embora exista a impressão de que esse burilamento de traquejos e obsessões vá continuar nos filmes futuros.
Num contexto extremamente desanimador no cinema americano independente, Anderson permanece um dos poucos diretores a provocar curiosidade pelos próximos passos. Não é pouco.
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