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Anhangabaú da Feliz Cidade

Por José Miguel Wisnik

Uma das singularidades de São Paulo é ter no seu centro uma fenda topográfica de difícil resolução urbanística: o vale do Anhangabaú. Na origem o vale protegia, juntamente com a várzea do Carmo, a colina onde se abrigava a povoação jesuítica. Com a expansão do núcleo urbano, no entanto, foi preciso vencê-lo, embora de maneira nunca definitiva. O vale, que abrigava um riacho assombrado, segundo o seu nome indígena, foi ocupado por chácaras, bordejado por plantações de chá, deu lugar a residências de elite, foi racionalizado como espaço público ajardinado, depois aberto a avenidas amplas e depois ainda transformado em calha automobilística subterrânea recoberta por uma praça de concreto de uso inconclusivo. Já abrigou shows e comícios, como o das Diretas-Já, sem que se consagrasse o sentido coletivo de sua ocupação. Sua história forma o palimpsesto de um espaço inabordável, anfiteatro de um acontecimento por vir e que não vem, no ponto cego da força centrífuga que arrasta a cidade para mais longe.

Atravessada pelo cartão postal do viaduto do Chá, a falha do Anhangabaú é o centro secreto dos vários centros que estão à sua volta: no meio exato entre a praça da Sé e a praça da República, entre o Pátio do Colégio e o cruzamento da Ipiranga com a São João, no qual a famosa canção “Sampa”, de Caetano Veloso, identificou o epicentro emocional em que o coração da cidade bate junto com o de quem chega. Não deixa de ser sintomático que o primeiro verso de “Ronda”, de Paulo Vanzolini, samba no qual se inspirou “Sampa”, pareça falar do giro em torno desse centro que não se fixa: “de noite eu rondo a cidade / a te procurar / sem te encontrar”. E que “Saudosa maloca”, de Adoniran Barbosa, seja o lamento sublimado de uma demolição oculta em camadas: o “edifício alto” ocupa o lugar onde estava o “palacete assobradado” que por sua vez ocupou o lugar da “saudosa maloca”. No “Trem das onze”, o Jaçanã (“moro em Jaçanã”) aparece literalmente como o ponto de fuga em direção às redondezas de uma circunferência tão pouco evidente quanto o centro da cidade (Vanzolini perguntou uma vez a Adoniran porque ele não dizia “moro no Jaçanã”, como é usual, em vez de “moro em Jaçanã”, e a resposta não se fez por esperar: “e eu sei lá onde fica essa porcaria?”).

Quando o eixo empresarial se deslocou para a avenida Paulista, Tom Zé surpreendeu, em “Augusta, Angélica e Consolação”, a mesma síndrome do centro faltante: entre duas mulheres indóceis, a Augusta e a Angélica (“Que saudade!” e “Que maldade!”) só se encontra o consolo de um nome: a Consolação. E é notável que o eixo de negócios, ao se deslocar cada vez mais para a Faria Lima, para a Berrini e a Marginal, já não deu mais samba, perdendo contato com os pontos de imantação em que o nervosismo da cidade se irradia.

Voltemos, pois, ao enigma do vale do Anhangabaú. A interpretação grandiosa dele se encontra no final da Paulicéia desvairada de Mário de Andrade. No longo poema intitulado “As enfibraturas do Ipiranga”, o poeta modernista imaginou o Anhangabaú tomado pela população em massa na execução de um convulsionado “oratório profano” sinfônico e coral, em que se expunham choques culturais e conflitos de classe quase como se fossem a manifestação de torcidas nos nascentes estádios de futebol (que, aliás, ocupavam às vezes o Anhangabaú para acompanhar ao vivo notícias de jogos acontecendo em cidades distantes). No poema, as “juvenilidades auriverdes” modernistas, com os pés mergulhados no fundo do vale, se debatem contra o coro solene dos “orientalismos convencionais” (artistas acadêmicos, parnasianos e beletristas, entrincheirados nos terraços do Teatro Municipal), secundados pela dança caricata das “senectudes tremulinas” (milionários e burgueses, nas sacadas elegantes do lado oposto do vale) e pela massa dos “sandapilários indiferentes” (trabalhadores e desempregados, postados no viaduto do Chá, reativos às batalhas campais da cultura de elite e mais interessados na ópera italiana e nos emergentes sucessos musicais de massa, como a marchinha “Pé de anjo”, de Sinhô).

Foi nessa grande fenda, no anfiteatro da falha central do vale do Anhangabaú, que Mário de Andrade vislumbrou a cidade como um tumultuado campo centrífugo de forças sociais, comportamentais, artísticas, de conflitos expostos, de impasses e destruição, mas também do generoso impulso transformador aberto ao múltiplo e à eclosão das diferenças. O centro é vivo e fecundo justamente ali onde ele não se fixa nem se fecha.  

  

José Miguel Wisnik é músico, ensaísta e professor de Literatura Brasileira na USP. É autor, entre outras publicações, de O coro dos contrários – A música em torno da Semana de 22 (1977), O som e o sentido – Uma outra história das músicas (1989), Sem receita – Ensaios e canções (2004) e Veneno remédio – O futebol e o Brasil (2008). Fez música para teatro, cinema e dança, além de Cds autorais de canções (José Miguel Wisnik, 1993, São Paulo Rio, 2000, Pérolas aos poucos, 2003, Indivisível, 2011 e Ná e Zé, com Ná Ozzetti, 2015). Atuou como professor convidado na Universidade da Califórnia (Berkeley) e na Universidade de Chicago