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A Terceira Corrente do Jazz
Por Regina Porto
Hadar é uma instrumentista magnífica, não importa qual modalidade de flauta que empunhe: seja um traverso moderno do início do século passado, construído em ébano com chaves em metal (evolução do traverso barroco, ainda adotado na música de época), seja a flauta alto em sol (ou contralto), encorpada no grave, de cabeça curva e toda em metal, com seleta aparição mesmo na música sinfônica. Instrumentos lindos de se ver, timbres lindos de ouvir, técnicas, afinações e embocaduras terríveis de se dominar. Em ambas, Hadar é um prodígio. Mas é no traverso que ela dedica maior parte do repertório, e talvez um carinho particular: foi o instrumento que carregou e protegeu do frio na própria manga do suéter depois do concerto.
Qualquer delas que seja, porém, corajoso de sua parte trazer a flauta para o jazz, instrumento cujo idioma se presta, ao menos convencionalmente, a um domínio mais etéreo, de menos presença alfa, menos projeção sonora. Só isso já diz muito do seu temperamento musical: Hadar não gosta de fronteiras. Em trio, é uma líder nata. Seu grupo, arregimentado desde 2016 (Amir Bar Akiva na bateria e o brasileiro Eduardo Belo no baixo), é apresentado como uma conexão Israel-Brasil. O repertório de fato justapõe as duas culturas, mas sem misturá-las: a alteridade é uma premissa, o que também diz algo da sua personalidade artística.
O trio de Hadar: Amir Bar Akiva na bateria e o brasileiro Eduardo Belo no baixo. Foto: Carol Vidal
O conteúdo autoral que prevalece no programa se insere no que já se usou designar “Third Stream”, ou Terceira Corrente, um meio caminho entre a música clássica e o jazz, onde ela parece ter achado um fio natural desde a composição formal e a improvisação dos antigos, num trânsito que inclui sua própria tradição ancestral de cultura oriental e judaica. Na base de cada peça sente-se uma plataforma rígida, uma estrutura angular, quase ortodoxa, território seguro em que ela primeiro finca bem os pés antes de tomar impulso e saltar em voo livre e errático. E é quando ela sai vorazmente em busca de outras falas, línguas e sotaques que surge seu dialeto próprio, o seu iídiche particular, digamos assim. Nessas horas, toca para si e para a comunidade. Um exemplo: “So Far” (“Tão longe”), fonética e musicalmente tão próximo a “Shofar”, o instrumento de sopro mais antigo da cultura hebraica. E é essa mesma linhagem de diáspora o que faz dela sempre uma estrangeira no mundo. E uma artista do mundo. Exemplo: “Baiam” (”Na praia”, em hebraico), como nomeou, em trocadilho, um baião brasileiro e seu.
Hadar tem uma história antiga com o choro, o chorinho brasileiro, o que acabou por fazer dela uma representante do gênero em Nova York, onde está estabelecida. Bem provável que saiba mais do choro do que nós, paulistas empobrecidos dessa que é uma prática cotidiana e de rua entre cariocas, calçadão do Rio e tudo, cidade que ela frequenta e não é de hoje. Prova é que aqui a plateia foi duas vezes reprovada. Se emocionalmente, sim, conhecemos, nominalmente, não, ninguém soube identificar nem Jacob do Bandolim nem Garoto, que ela tocou de modo estupendo, como uma trapezista sem medo de alturas, com piruetas e floreios majestosos. Diga-se, Hadar não só toca bonito a música brasileira. Toca com muita imaginação e grande empatia, meio que já irmanada culturalmente a sentimentos velhos conhecidos nossos de alegria e de melancolia, até de volúpia. Foram instantes sublimes do concerto. Menos por nos dizer algo diretamente – e mais pela musicalidade expressa em plenitude, quando ela então se permite explorar todos os recursos do instrumento e chega mesmo a ultrapassá-los.
Regina Porto é compositora, documentalista e pesquisadora musical.
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Veja as fotos do show de Hadar Noiberg no Jazz Na Fábrica: