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Etiópia Expandida
Em um dos dialetos etíopes, o amharic, “Debo” quer dizer “coletivo”. Logo, “Debo Band” quer dizer, bom, você entendeu. Mas e se em lugar de “coletivo”, que é um conceito muito em voga e ocidental (porque dialético: o coletivo versus o indivíduo), usássemos, por exemplo, “tribal”, conceito bem mais africano (já que o tribal não distingue entre o eu e o outro)? Um salto cognitivo se dá de imediato. Melhor que isso, só operar com ambas as ideias. Porque a Debo Band, sem aspas, é as duas coisas: um coletivo tribal, expressão acima de qualquer pleonasmo.
Debo Band: um coletivo tribal. Foto: Érika Mayumi.
Tribal porque um de seus ramos de origem é a Etiópia, no Leste da África, provável berço do homo sapiens e nação de dinastia milenar, independente e gloriosa até conhecer, em décadas recentes, a pobreza, a seca e a fome. Coletivo porque o outro ramo é Boston, abrigo da ciência e do conhecimento humano de ponta (Harvard, MIT etc) e, por isso mesmo, meca da tecnologia, do investimento e do poder ocidental. E foi nesse ambiente Massachusetts-de-ser que surgiu a Debo, banda criada por um jazzista etíope nascido no vizinho Sudão (o saxofonista e etnomusicólogo Danny Mekonnen), a quem coube convidar um vocalista franco-etíope fenomenal (Bruck Tesfay) e arregimentar sete instrumentistas caucasianos de origem diversa, muito modernos e muito bacanas (sax, trompete, guitarra, bateria, baixo) – incluindo duas garotas responsáveis por instantes de absoluta sublimação, uma ao violino e outra ao acordeón, ambos os instrumentos expandidos (amplificados e alterados no timbre).
Esse, o quadro posto no palco. A polaridade é tamanha, que é impossível não sair daí música muito original, toda feita em contraste e paradoxo. E sai. A Debo é jazz, é soul, é tradição, é vanguarda, é 100% multicultural e misturada e é 100% étnica e pura. Dito de outro modo: o conteúdo (discurso e essência) é africano e ancestral, enquanto forma e approach (arranjo, harmonização, improviso) têm base ocidental, psicodélica e contemporânea. De tão bem amarradas, as diferenças só comprovam essa dupla vocação para o coletivo e o tribal.
Kaethe Margit Hostetter com seu violino amplificado. Foto: Érika Mayumi.
Agora vamos ao condutor que coroa isso tudo: essa presença de longínqua majestade, essa voz encantatória do cantor e performer franco-etíope Bruck Tesfaye, com sua figura longilínea, sua elegância em calça de cores geométricas, seu olhar triste e amoroso, quase tímido, sua voz melismática de beduíno descendente de todas as culturas abraâmicas da Etiópia, a judaica, a cristã e a islâmica. Dizem na África que Deus dá a um cantor uma bela voz para que ele possa ser ouvido naquilo que interessa a quem o escuta – se não, de nada terá servido ser cantor. Também se diz, em outras culturas, que todo aquele que conhece os segredos da música tem o poder de reger o mundo. Com seu feitiço, mistério e poder de concentração, Bruck rendeu, hipnotizou e magnetizou a plateia, com a qual se misturou fisicamente, cantando e dançando junto, ora deitado ajoelhado de costas, ora aos pulos, unindo e coreografando o abraço da “multidão” (nos fez sentir multidão), não como diversão barata ou new age, mas como um ritual tribal dado não menos do que a curar, em cada um, todas as dores do mundo e de si.
E nos cantos de paixão e lamento, quase uma prece, como não pensar em Aster Aweke, uma cantora etíope soul estupenda, diria até meio contraparte de Billie Holiday, e cujo disco feito na América, conhecido anos atrás, me marcou para sempre? E a cada improviso em tutti dos sopros da banda, sim, improvisos geniais em conjunto (onde já se viu?!), dissonantes, raspados, ruidistas e estridentes, cada um por si e todos por cada um, como não lembrar de alguns desses malucos maravilhosos soltos no mundo, como o multiclarinetista francês Michel Portal e o saxofonista americano Ned Rothenberg, este, aliás, também de Boston?
É dessa conversa que o mundo precisa. Urgente. Pra ficarmos mais civilizados.
PS: Não faltou ao show o justo tributo a Duke Ellington que, pouca gente sabe (eu não sabia), teve suas sessões de jazz in loco com músicos etíopes. E isso nos anos 1950. Porque faz tempo que a África está aí influenciando a música do mundo, não é de hoje.
Regina Porto é compositora, documentalista e pesquisadora musical.
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