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A Banda-escola de Eddie Allen
Por Jotabê Medeiros
Com uma banda de múltiplas influências, o trompetista Eddie Allen, instrumentista do Norte dos Estados Unidos, Wisconsin, que se estabeleceu em Nova York, apresentou-se ao público de São Paulo na abertura da sétima edição do Jazz na Fábrica, na noite dessa quinta-feira (10/ago).
Com casa lotada, público participante e atento, Allen abriu a noite com Nakia, composição do disco Push (2016), uma canção que mostrou de cara sua proposta de arranjador: os metais, à frente do septeto, fizeram solos em sequência parelha (primeiro trompete, depois sax e trombone), para finalmente serem cimentados pelo solo de sintetizador do russo Misha Tsiganov, condimento de esquizofrenia urbana. É interessante notar que o bandleader Eddie Allen dispõe sua banda à maneira da orquestra do baterista Art Blakey (com quem tocou), mas dissolvendo a tradição na foz do grupo, o sétimo integrante, que é Tsiganov, um discípulo de Wayne Shorter.
As intervenções de Tsiganov nos sintetizadores criam um ruído de urbana convicção (e o necessário mimetismo de marimbas, vibrafones e um clavinete), que tinge toda a música do trompetista.
A banda de Eddie Allen (Foto: Érika Mayumi)
Ao piano Steinway, sentava-se com discrição absoluta James Weidman, que foi quase um reserva de luxo ao longo do set, embora um dos mais graduados no palco - ele já foi indicado a um Grammy pelo trabalho com Joe Lovano e tocou com as cantoras Abbey Lincoln e Cassandra Wilson.
Do mesmo álbum, Eddie Allen e banda seguiram o show com a movimentada Sacred Ground, uma composição que se dissolve em ritmo e balanço, com o trombone de Dion Tucker agindo como um elemento popular, uma cuíca de desarmamento. Essa é a dinâmica das composições de Allen. Discípulo de Lee Morgan (notável trompetista que morreu aos 33 anos e tinha como peculiaridade enxertar blues dentro de estruturas de free jazz), ele usa a tradição como motivo e a abre progressivamente para pitadas de funk e mesmo reggae e samba.
With Open Arms, mais tradicional do repertório (também do álbum Push), foi a peça em que o piano de Weidman ganhou mais protagonismo, mas tudo confluía para os teclados de Tsiganov, como se Allen ilustrasse que o caminho natural da organicidade é sua multiplicação tecnológica. Ao emparelhar o piano acústico com os sintetizadores, uma na extrema direita e outro na extrema esquerda do palco, Eddie Allen ilustrou uma pequena aula de como o jazz de movimenta, do hard bop à soul music, passando pelo blues.
(Foto: Érika Mayumi)
Eddie foi sideman (e também músico de estúdio) de uma infinidade de astros do jazz: Art Blakey, Benny Carter, Chico Freeman, Dizzy Gillespie, Houston Person, Bobby Previte, Mongo Santamaria e Randy Weston. Começou a liderar e gravar como líder em 1994, quando lançou Another’s Point of View pelo respeitado selo Enja. Portanto, sem ter se notabilizado como sideman, é ainda um tanto desconhecido pelo público brasileiro, mas esse gelo inicial parece ter se quebrado pelos méritos indiscutíveis. Ele é discreto, mas defende o jazz como uma ampliação da sensibilidade, incorporando contribuições de solistas, como Horace Silver ou Dizzy Gillespie, e esse é seu gol.
Eddie Allen terminou o show com a faixa-título de seu disco mais recente, Push. “É hora de dizer adeus”, brincou. Alguém retrucou da plateia e ele se disse cansado, mas, ouvindo os apupos da plateia, Eddie e seu septeto voltaram rapidamente para uma última “seleção”, como ele chamava as canções. Ele escolheu Our Day Will Come, uma canção de R&B popular composta em 1962. Na hora em que a anunciou, esqueceu o nome de quem disseminou a canção inicialmente, mas foi ajudado pelo sax tenor, Darryl Lance, espécie de regente-assistente do grupo. Lance o lembrou que a música foi sucesso inicialmente com o grupo Ruby & the Romantics (foi gravada depois também por Julie London, Patti Page, Doris Day, Supreme e, em 2011, por Amy Winehouse, lembrou então Allen). Doce e generosa, a versão de Eddie levou todo mundo para casa com um sorriso no rosto.
Curioso notar que o jazz de Eddie Allen, que é também educador, é rigoroso e milimétrico como todo jazz de “schollar”. Mas, ali mesmo em seu show, ficou fácil notar porque o jazz não é definido somente pela aplicação. O baterista texano Rudy Royston, com uma vigorosa e entusiasmada sequência de solos, levantou o público, que o saudou como um ponto fora da curva no concerto. Acostumado a acompanhar artistas de avançadas proposições musicais, como Dave Douglas, Bill Frisell, Greg Osby e Jason Moran, Royston (eleito baterista revelação pela famosa revista DownBeat em 2014), ganhou a noite e um punhado de novos fãs. Em suas baquetas, o gênero vai à frente por sua capacidade de alucinar, de tirar a energia dos lugares de onde ela parece exaurida, e reavivar.
O baterista Rudy Royston clicado por Érika Mayumi
Jotabê Medeiros é jornalista, crítico de música e escritor.
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