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De Pernambuco para o Mundo
Por Regina Porto
Nunca tinha ouvido falar em Amaro Freitas. Até agora. Pois aos gloriosos 24 de agosto de 2017, Amaro Freitas estreou em São Paulo num concerto que já reputo histórico. Foi na sétima edição do Jazz na Fábrica, e eu estava lá para dar fé e testemunho. E foi ouvir “Sangue Negro” pela primeira vez, o repertório que compõe seu disco de estreia, e saber de cara que aquele era um fenômeno: um gigante havia surgido. O gigante é do Recife, e sua música reaviva, sem precisar proclamá-lo, o grito primal de “Pernambuco falando para o mundo”, o velho slogan de rádio que virou bandeira para uma geração de reinventores da música dos mangues.
Com 26 anos, só isso, e construção sólida no estudo formal, Amaro Freitas é um artista inteiro pronto: como pianista e como compositor. Esponja típica da geração Y-Z, surpreende o tudo que já sabe e domina da cultura popular tradicional, da cultura dos clássicos e da cultura do jazz. Faz música de máxima voltagem combinada a uma delicadeza de extrema intensidade e o rigor próprio dos obsessivos pela consagração do detalhe. Desde a primeira nota, o primeiro acorde, o primeiro ataque perfeito em trio (piano, baixo, bateria), a escuta da gente já se apruma, orelha em pé, atenta. São muitas as camadas sonoras nessa música pura, puríssima.
Ouvir Amaro é uma experiência e um impacto. A primeira coisa que intriga é o uso que faz da atonalidade da música de vanguarda contemporânea combinada à tonalidade de tradição popular. É comum em música que a atonalidade resulte, involuntariamente, em barreira comunicativa. Já muito incomum é que um músico – e um músico popular! – faça uso da atonalidade a seu favor, de forma persuasiva. E mais: que consiga traduzir, inserir e compartir um conhecimento complexo na chave sensível do prazer da performance e do prazer estético.
Amaro Freitas (piano), Jean Elton (baixo) e Hugo Medeiros (bateria). Foto: Carol Vidal
Porque o que fazem, juntos, esses três virtuoses – e agora me volto ao trio (Hugo Medeiros na bateria, Jean Elton no baixo acústico), esse verdadeiro trio de câmara, ou verdadeiro “power trio”, as duas analogias cabíveis – o que fazem é tocar, brincar e jogar, tudo num só verbo, pra usarmos o inglês comum (“to play”). E brincam com fogo, e jogam pesado, e tocam muito. E se algo aqui soa clichê, é o texto, não a música. Porque essa música mestiça de índices brasileiros tão evidentes e referências universais tão imediatos não se parece com nada que já possa ter soado antes no planeta.
As harmonias, puro deleite, são na verdade constelações harmônicas – ou desarmônicas, no mais belo sentido – de enorme densidade. Vêm agrupadas como notas em cachos, em constante progressão cromática, como linhas faladeiras e multicoloridas, e em sincronia atonal. Quase um paradoxo. E são dissonâncias tão bem construídas e tão líricas, e às vezes tão divertidas e sempre tão bem arquitetadas (partitura invisível ao público, mas música toda escrita, sim), que a gente fica sem saber, afinal, se estamos sendo flechados – e rendidos – por falsas dissonâncias ou falsas consonâncias. Importa? Não. Importa que a música nos transporta para o duplo reino sensorial e intelectual do jazz, a inteligência e emoção musical combinadas.
A rítmica vai igual: complexa e irresistível. Como nos momentos em que parece combinar assimetrias de acentos rítmicos com os breques típicos do frevo ou o samba de breque (“Samba de César”), fazendo prevalecer uma polirritmia de tempos quebrados. É tamanha a plasticidade sonora que a escuta fica tomada por imagens figurativas e abstratas. Como se forma e conteúdo dialogassem o tempo todo. “Mantra”, por exemplo, parece dar estrutura ao balé desengonçado dos bonecos do carnaval de Olinda, com seu minimalismo espiral, seus contrapontos sobre camas complicadíssimas do baixo, seus desenhos de frases em variação constante e sua exploração generosa de timbre. Junte suas mudanças de compasso que se alternam em 3, 4, 5, 6 tempos, meio à la Bela Bartók, meio à la Arrigo Barnabé, como se isso fosse como é, a coisa mais natural do mundo. Gênios!
O "power trio" de Amaro Freitas. Foto: Carol Vidal
Ou quando Amaro cria um gênero novo, o frevo-balada (“Subindo o Morro”), segundo diz, “nem frevo de rua nem de bloco”, mas um quase impossível frevo lento, de arrepiar a espinha, em parte pela vassourinha da bateria, em parte pelas notas que deslizam pelo baixo, em parte pelo pianíssimo sublime do grupo, quando cada um dá provas dessa rara sabedoria no mundo do improviso, que é a contenção da espera do instante certo para aquela nota única – e ponto.
Os temas são tão difíceis quanto ensolarados. Exigem pensamento de tutti, performance impecável e concentração também da plateia. Os arranjos revelam cálculos milimétricos, com os improvisos quantitativamente comedidos que emergem generosos, caudalosos e transbordantes do piano; com o relevo certo, aqui e ali, da bateria, uma máquina de pulso tão precisa quanto sensível à verticalidade e horizontalidade da música; e com o espetáculo sempre discreto do contrabaixo no apoio firme, na reverberação de harmônicos e na agógica do fraseado, quando a gente tem a sensação vertiginosa de suspensão do tempo.
O mundo de John Cage passa por aí também, sobretudo no conceito de silêncio, quando reduzido a pausas bruscas (“Encruzilhada”), e da sonoridade da mecânica interior pianística numa recriação original de um Dominguinhos clássico (“Lamento Sertanejo”). Partindo de um ostinato sobre uma nota só, a melodia é esboçada com os dedos da mão direita direto nas cordas do piano, revestindo-a da amplidão cósmica da caixa acústica, com a mão esquerda no teclado harmonizando por clusters só concebíveis na estratosfera harmônica de um Arnold Schoenberg e na constelação tímbrica de um Anton Webern. Lindo. De algum lugar, Dominguinhos talvez tenha se maravilhado, e também se envaidecido, por confirmar o poder de sua melodia modal, capaz de se plasmar em tantas belezas diversas sem jamais se perder.
Amaro Freitas toca "Lamento Sertanejo". Foto: Carol Vidal
O concerto termina em fortíssimo poderoso e profundo (“Sangue negro”). Bons músicos sabem que força musical alguma vem da força física: vem da mente, do seu exercício e preparo. Esses músicos ensaiam muito, soube depois. De volta ao palco para o bis, que tal mais uma variação de sotaque? Dessa vez a reinvenção do mixolídio (“Baião de Dona Eni”). A escala permanece mixolídia. Já a harmonia vira pura liberdade: atonal, dissonante e moderna.
Os músicos se abraçam ao final do show. Foto: Carol Vidal
O público entendeu. E os músicos se abraçaram com a alegria e modéstia dos que sabem que fizeram algo verdadeiramente excepcional.
Regina Porto é compositora, documentalista e pesquisadora musical.
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Veja as fotos do show de Amaro Freitas no Jazz na Fábrica: