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Annette Peacock: um desafio ao ouvinte

Foto de Annette Peacock: Alastair Thain.
Foto de Annette Peacock: Alastair Thain.

Por Ramiro Zwetsch


Quando o baterista britânico Roger Turner entrou no palco tirando som da fricção de uma baqueta contra outra, já dava pra pressentir que a apresentação da cantora e pianista nova-iorquina Annette Peacock neste sábado, no festival , passaria longe do convencional. O tremelique perturbador soava como um chocalho de cascavel, um anúncio do que estava por vir. Quando sentou-se diante do instrumento, seguiu em uma exploração de timbres improváveis nas partes metálicas que envolvem os tambores. Surge então um vulto no lado oposto, uma figura muito magra que se desloca até o piano de forma sorrateira. A luz é baixa e escura, com poucos refletores nas cores azul marinho e roxa. É impossível reconhecer as feições do rosto da artista, mas nota-se que ela está de boina. “Don’t hurt me” (“não me machuque”), ela sussurra, para depois se desvendar ao público por meio de um vozeirão privilegiado, poucos acordes ao piano e uma estética desafiadora.


O baterista inglês Roger Turner. Foto: Andy Newcombe


A apresentação segue por 1 hora em um clima bem estranho. A bateria, em momento algum, marca um ritmo; é quase um trabalho de sonoplastia, em que o músico se propõe a criar um certo desconforto. Os vocais se alternam entre partes declamadas e cantadas, com conteúdo lírico politizado e uma remota lembrança ao estilo da roqueira, poetisa e precursora do punk Patti Smith. Quando apresenta as melodias, revela-se uma voz potente: é grave, mas alcança os agudos aparentemente impossíveis. O piano é minimalista, de poucos acordes. E uma bateria eletrônica é disparada às vezes com uma proposta que remete ao trip hop de bandas como Massive Attack e Portishead. São peças que não se encaixam – ou, que não imaginaríamos encaixadas se as ouvíssemos separadamente: bateria free jazz, piano extremamente simples, batidas eletrônicas de um groove sombrio e um vocal que alterna boas melodias com declamação.


O público não sabe como lidar com a experiência. Depois de duas músicas, ninguém aplaude. Não fica claro quando acaba uma música e começa a outra, os finais são abruptos. Percebe-se uma certa inquietação também: murmúrios, gente olhando o celular e atrapalhando a experiência de quem embarcou na viagem de Annette Peacock. Como que para marcar um intervalo, ela suspira e se levanta brevemente do piano ao final da terceira música. Aí sim, aplausos. Ela agradece em português. E muita gente aproveita pra se levantar e sair. Ela pergunta ao baterista o que vem agora. Roger Turner murmura algo. Ela insiste: “o quê? O quê? Ah sim, está certo”.  E segue a narrativa de mistério, algo meio David Lynch, que não se explica, um som que combina uma desconstrução rítmica perturbadora com a beleza de voz e letra envolto por uma iluminação que não mostra os movimentos nem as expressões faciais da artista.


Em um raro momento, a luz revela um sorriso no rosto da compositora. Ruídos na bateria e no público; mais pessoas deixando o show. E Annette sorri, como se a saída de alguns fizesse parte do espetáculo. De fato, naquele ambiente totalmente estranho e cinematográfico, o movimento de silhuetas nas escadarias parece mesmo parte da encenação de um teatro de sombras. De repente, ela se levanta do piano e sai. Mas sua voz ainda se faz ouvir. Playback. Um fade out nos leva ao silêncio, o baterista deixa as baquetas caírem e o show acaba. Sem bis. Sem choro, nem vela. Fim. Simples assim. Não tão simples. Depois, um comentário recorrente entre os que resistiram à apresentação inteira era: “não sei se gostei”. Mas a vontade geral de repercutir e discutir é um bom sinal – é disso que trata a arte afinal, instigar a reflexão.


Atualmente com 76 anos, a artista gravou seu primeiro disco, “I’m The One”, em 1972. O som é visionário e reverbera duas experiências em particular: a descoberta do sintetizador moog e as viagens com LSD. Suas composições chamaram atenção tanto de figuras do rock, como David Bowie, até jazzistas como o pianista Paul Bley. Embora associada ao jazz avant-garde, sua obra mistura folk rock, soul e psicodelia e sempre desafiou os rótulos. Sua primeira apresentação no Brasil não poderia ser previsível e acaba por surpreender a todos: desde o sujeito desavisado que assiste a qualquer show em um festival de jazz até o ouvinte que cultua o som que ela fazia nos anos 70. Ninguém escapou da surpresa e da dúvida – e era isso mesmo que Annete Peacock queria.


Ramiro Zwetsch é jornalista, DJ e um dos sócios da loja Patuá Discos.

O show de Annette Peacock não teve registro fotográfico ou de vídeo por pedido da própria artista.

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