Sesc SP

Matérias do mês

Postado em

Experiência para guardar na memória e correr atrás de mais

O pianista sul-africano Abdullah Ibrahim. Foto: Nego Júnior.
O pianista sul-africano Abdullah Ibrahim. Foto: Nego Júnior.

Por Antônio Carlos Miguel 

Traduzir em texto o que a plateia que lotou o Teatro do Sesc Pompeia vivenciou na noite de domingo é tarefa ingrata. Afinal, epifania não se explica e, como o compositor, professor e inventor de instrumentos suíço-baiano Walter Smetak costumava frisar, “falar sobre música é uma besteira; fazer, uma loucura”. Mas, para esse papel existem os pobres críticos e suas tentativas de capturar em palavras a emoção sem limites. Por quase duas horas, com direito a três voltas aos instrumentos para bisar, o sul-africano Abdullah Ibrahim e seus seis músicos fizeram um concerto arrebatador. Daqueles para guardar para sempre na memória e, em seguida, também correr atrás de sua grande obra já registrada em disco, MP3 ou qualquer outra plataforma sonora existente. Aos 82 anos, o pianista e compositor nascido na Cidade do Cabo, em 9 de outubro de 1934, como Adolph Johannes Brand - e que usou o nome artístico de Dollar Brand até 1968, quando se converteu ao islamismo -, provou nessa sétima edição do Jazz na Fábrica por que é um dos gigantes do jazz contemporâneo.

Abdullah Ibrahim - Cre´ditos para Nego Ju´nior © 2017 - IMG_8092

O pianista sul-africano Abdullah Ibrahim. Foto: Nego Júnior.

Sozinho no palco, ele abriu o concerto com uma versão de quase 20 minutos de “The Mountain”, tema que pode ser encontrado em seu álbum Water from an Ancient Well (1986) [ouça abaixo] - e do qual, ao longo da noite, tocou mais duas composições, a que dá título ao disco e “The wedding”. Grande música, na qual se diluem os limites entre jazz, clássico ou popular, repleta de nuances e profunda, passando por linhas de blues, spirituals, cânticos africanos e impressionismo.

 

Após a introdução solo, às teclas brancas e pretas juntaram-se a flauta do estupendo Cleave E. Guyton (que, através do concerto ainda tocou saxofone e piccolo) e o violoncelo do também contrabaixista Noah Jackson. Alguns minutos depois, o restante dos músicos entra em ação, com Will Terrill (bateria), Andrae Murchisson (trombone), Marshall McDonald (saxofone) e Alex Harding (sax barítono). Com essa formação completa, grupo de base e naipe de sopros em comunhão, foram apresentadas duas composições que estão num disco de 1983, “Nisa" e “Sotho blue”.

2017 08 19 Abdullah Ibrahim ft Beatriz de Paula (2)

Abdullah Ibrahim e seu sexteto. Foto: Beatriz de Paula.

Uma das referências para a obra de Abdullah Ibrahim pode ser a igualmente abrangente música de Duke Ellington (e seu braço direito e esquerdo, coração e mente, o também compositor e arranjador Billy Strayhorn). No início dos anos 1960, quando estava exilado na Europa para fugir do regime do apartheid, o então jovem pianista sul-africano conheceu Sir Duke e foi incentivado por este a passar uma temporada nos Estados Unidos onde também trocou experiências com outros grandes nomes do jazz. Não por acaso, em seu último bis neste domingo, a escolhida foi “Duke 88”, tributo que dedicou ao mestre no álbum African River (1989).

A partir desse PhD informal nos EUA, ele prosseguiu desenvolvendo uma obra original, na qual é possível também identificar sonoridades do Extremo Oriente e do Norte de África - caso, na noite de domingo, do trecho em que, solando no piccolo, Cleave E. Guyton envereda por arabescos que nos transportam a paisagens do Saara.

Abdullah Ibrahim - Cre´ditos para Nego Ju´nior © 2017 - IMG_8046

O músico Cleave E. Guyton. Foto: Nego Júnior.

Na primeira hora, os temas tocados pelo líder e seu grupo se encadeavam, praticamente sem intervalos, como numa suite. Composições, incluindo ainda “Mindiff”, “Blue bolero” e “Did you hear that sound”,  bem estruturadas, impressas na partitura, mas sempre abrindo espaços para os inventivos solos de cada instrumentista. Como pianista, Abdullah está mais preocupado em desenvolver os desenhos melódicos, praticamente sem solar, dosando notas e pausas para contar suas narrativas sem palavras, enquanto cabe a cada instrumentista adicionar comentários, outras versões que contribuem para o enredo final. Em alguns desses momentos, sem tocar no piano, ele apenas conduz a banda por essa encantadora viagem pelo universo dos sons.

A recepção calorosa da plateia foi retribuída com os generosos números de bis. Abdullah chamava músico a músico ao seu lado e regia os cumprimentos de cada um, para depois pedir que voltassem as seus postos. Mais música, mais emoção, mais aplausos, num jogo que, após o primeiro final, se prolongou por cerca de 45 minutos delirantes. Se dependesse do público, ainda estaríamos por lá. De certa forma, continuamos, com a música de Abdullah Ibrahim gravada dentro de nós. 

Antônio Carlos Miguel é jornalista e crítico musical, mantém uma coluna no site G1.

---

Veja as fotos das duas noites de Abdullah Ibrahim no Jazz na Fábrica:

sescsp.org.br/jazznafabrica