Postado em
Masp, Mesbla e outras descobertas
Por Juliana Braga
Meados dos anos 80 em São Paulo. Lembro-me nitidamente de meus olhos e mãos percorrendo, apressados, o volume misterioso. Habitualmente eram chocolates e outras guloseimas importadas, garrafas de scotch e licores que ganhavam, em especial, a atenção dos adultos da casa; mas livro, livro era a primeira vez.
O formato - capa dura e sobrecapa que trazia a foto aérea de uma construção impactante, suspensa em gigantescos pilares cinza - era sedutor o suficiente para deixar de lado a descoberta dos demais itens que, todo final de ano, me atraíam para a caixa de souvenirs oferecida a meu pai, pela empresa na qual trabalhava.
No virar das folhas, surgiram imagens: a maioria trazia figuras sisudas e cenas religiosas, algumas crianças que vestiam estranhas roupas e mulheres, mulheres nuas e muito brancas, de bochechas rosadas e olhares distantes. Algumas paisagens bucólicas. Uns quantos interiores dramáticos. Mas aquela que mais me inquietava era a figura de um garoto - “seria um garoto?” - retratado em cores fortes e cuja boca e cujas mãos, especialmente as mãos, me enchiam de estranheza. Um misto de atração e repulsa não me permitiam decidir o que de fato sentir diante daquela imagem. Ali, pela primeira vez ao que me lembro, pude perceber que a arte, que daquele livro saltava para me fascinar, me proporia ao longo da vida mais dúvidas do que certezas. E aquilo era bom. Estranho e bom.
Só algum tempo depois pude entender que o menino retratado, nomeado na legenda como “O Escolar”, ao lado de letras em caixa alta anunciando Vincent Van Gogh, alterara de uma vez minha percepção e leitura do mundo. E só muito adiante eu me encontraria frente a frente com o desconcertante garoto no MASP - o volumoso edifício da capa do livro, que chegara a mim muito antes que eu sonhasse em atravessar a cidade, em direção à “cidade”. Pois era assim que minha avó insistia em dizer, cada vez que tinha que sair de nosso bairro na região leste em busca de algum endereço no centro de São Paulo. “Vou à cidade”. O destino, quase sempre era um comércio na populosa vizinhança do Viaduto do Chá - Mappin e Mesbla eram os favoritos.
A distância e o tempo me mostram que, de alguma forma, os passeios e idas ao centro de São Paulo, distante da região em que morávamos, foram igualmente moldando minha forma de ler as imagens do mundo. A escala monumental dos prédios, em comparação à intimidade do espaço doméstico, talvez tenha gerado igual fascínio àquele provado no mergulho para a leitura das imagens do “museu portátil” que ganháramos na cesta. Muitos outros museus cruzaram meus caminhos depois. Muitas desconstruções e reconstruções do que significa observar e enamorar a perspectiva de uma obra de arte. Mas ainda guardo na memória o cheiro e o impacto daquela primeira descoberta.
Hoje, em meu ofício diário, sublinho a certeza de que a arquitetura e a arte podem alterar nossa forma de viver e sentir a paisagem da cidade. Neste momento mais do que nunca, quando São Paulo receberá, na pulsante rua 24 de Maio, uma nova instalação do Sesc: edifício de arquitetura singular, cuja utopia lúcida de seu genial autor projetou rampas que transportam os passantes da rua a uma cobertura habitada por uma piscina a céu aberto – generosidade rara nas cercanias do prédio e em muitas outras cercanias de nossa SP. No diálogo com esta potente arquitetura, marcou-se o desejo de instalar objetos correlatos que transbordassem emoções (nas palavras do poeta T.S.Eliot).
Percorrendo com os visitantes as transições e espaços de estadia do prédio, estão instaladas obras de artistas brasileiros: Claudia Andujar, Marcello Nietsche, Elisa Bracher, Carmela Gross, Stela Sokol, Marcelo Cipis, Regina Silveira, Vicente de Mello, Leda Catunda, Augusto de Campos, Jac Leirner, Guto Lacaz e Waltercio Caldas.
Com os trabalhos destes incríveis criadores imaginamos celebrar e dividir, com os públicos que adentrarem o edifício, a inquietação provocada por uma obra de arte. Em sua estranheza ou empatia imediata.
Juliana Braga de Mattos, historiadora e museóloga, é gerente de Artes Visuais e Tecnologia do Sesc São Paulo.