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O que nós sabemos sobre Hermeto Pascoal não é nada perto do que Hermeto sabe sobre a gente.

Hermeto Pascoal comanda a dinâmica de sua banda no Jazz na Fábrica 2017. Foto: Carol Vidal
Hermeto Pascoal comanda a dinâmica de sua banda no Jazz na Fábrica 2017. Foto: Carol Vidal

Por Jotabê Medeiros 

É essa a sensação que perdura após um show do “bruxo” de 81 anos, como o que ele fez na noite deste domingo no festival Jazz na Fábrica, no Sesc Pompeia. Como outros músicos que extrapolaram o conceito de performance e migraram para a explicação filosófica dos movimentos do mundo (Hans Joachim Koellreutter, Walter Smetak, Stockhausen), Hermeto vive para se contrapor aos hábitos, aos apegos sociais, aos condicionamentos. É quase um soldado dessa disposição. “Quanto mais eu sei, menos eu quero saber”, afirmou esta noite.

Não é que Hermeto faça uma jam session eterna, há rigor e construções sólidas em progresso. Mas o que ele faz é uma arte em movimento. Que é também diversão pura. Ele se diverte, deita e rola no chão do palco, canta fazendo gargarejo numa taça de água, ronca e dança e vibra quando alcança uma inserção dos barulhos do público na música que executa. Ele se diverte e nós nos divertimos. “Eu sou criança porque faço coisas que eu fazia quando criança”.

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Os multi-instrumentistas que acompanham Hermeto. Foto: Carol Vidal

A banda de Hermeto é extraordinária, todos multi-instrumentistas: o pianista André Marques, o baixista Itiberê Swarg, o saxofonista Jota P, o percussionista Fabio Pascoal (filho de Hermeto), o baterista Ajurinã Zwarg. Todos parecem dispostos a correr riscos, uma pré-condição para tocar com Hermeto.

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Hermeto Pascoal e Grupo. Foto: Carol Vidal

Com a composição Tamancos e Pilão, ilustrou “a ideia de mostrar que a música está em todos os contextos”. Para criar os contextos, lança mão de tudo. Um berrante arranha a superfície da música como se fosse uma caravana cortando o sertão. Canções como Viva Edu Lobo! surgiam acompanhadas de uma explicação do tributo: “Na hora da mixagem, eu me lembrei. Nessa música aí, veio o cara, Edu Lobo. Aquele violão dele, que toca da maneira dele. Genial. Por isso que ele não tá na mídia, porque a mídia é burra pra cacete”, discursou.

Ele convoca e ninguém se nega a cooperar. Em dado momento do show, contou com o auxílio luxuoso do contrabaixista paulista Arismar do Espírito Santo. Depois, entregou uma espécie de comenda (um quadro que ele mesmo pintou, de uma partitura) ao pernambucano Antonio Nobrega (que estava meio tímido). Ao final, saudou os muitos músicos da plateia (Duofel, o baterista Nenê), ele fez da jornada um verdadeiro happening. 

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Arismar do Espírito Santo e Hermeto. Foto: Carol Vidal

O músico contou que, por insistir em atar as pontas de sua vida, lhe dizem com frequência: “Hermeto, você não está em Lagoa da Canoa mais não!”. Ele nasceu em Lagoa da Canoa, no interior de Alagoas, e suas primeiras incursões musicais foram imitando os sapos e os bichos da natureza. “Então eu junto as coisas”, explicou. O passado e o futuro não existem em sua música, é tudo junto e misturado, é tudo presente. Então, um berrante, um tamanco, dois pilões e um gargarejo compõem parte indissociável de sua música, que ele não repete.

Quando o roadie do show limpou o chão do palco, ele sugeriu: “Põe um microfone aí, pega o som do lencinho”. E simulou o som do lenço ao microfone. O que está acontecendo em volta não é, para Hermeto, uma combinação de fatos irrelevantes. Tudo é matéria que se incorpora ao que ele está fazendo, música ao vivo.

Logo em seguida, para contar uma história, deitou-se no meio do palco. “Não sei se o corpo levanta. Se não levantar, deixo ele aqui e vou-me embora”, brincou. Hermeto então contou como simulou um mal-estar, deitando-se num tapete, mas pediu para deixarem um microfone sem fio do lado dele. Então, começou a roncar um parabéns para você lentamente, até que a plateia descobriu que ele não estava tendo um treco, que estava de zoeira.

“Eu tenho uma galinha que põe 100 ovos de uma vez, mas não consigo entender: bota três de cada vez”, declamou, como num hip-hop. “Com um pintinho novo, comecei tudo de novo”. Toda noite ele começa tudo de novo.

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O público e Hermeto. Foto: Carol Vidal

“As pessoas que estão aqui amam teatro, amam a música, amam a dança, amam o aviador, amam o Hermeto andando de jumento”, discursou. O formidável Hermeto considera que não é a música que cria uma trilha sonora para a vida, mas o contrário: é a vida que alimenta a música. Quando não se observa isso, a arte passa a ser uma combinação aritmética daquilo que já foi feito, e Hermeto é o contrário disso. “O mundo é muito lindo e muito cheio de surpresas. É por isso que são várias belezas”, disse o músico.

Jotabê Medeiros é jornalista, crítico de música e escritor.

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