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O Flamenco Como Rito
Por Regina Porto
Impossível passar por um concerto de Chicuelo-Mezquida sem que me volte à memória um dos textos mais assombrosos que já li na vida, “Teoria e prática do duende”, de Federico García Lorca. Vou me deter um pouco no tema do duende (esqueça o bibelô esotérico), porque entender o que representa esse “espírito oculto da dolorida Espanha”, esse daímôn louco, essa entidade que povoa o imaginário de um povo como um ideal de arte, de gênio, vida e de morte (sim, de morte) é entender mais do rito do flamenco e seus “sons negros”.
Esse duende mora em poucos. Independe de técnica ou maestria: é um estado, um algo. Há quem o tenha, há os que pensam tê-lo. E nem anjo, nem demônio, nem musa – só o duende, ora exuberante, ora mesmo moribundo, é capaz de promover naqueles que o possuem (e nos que o vislumbram) essa “evasão real e poética deste mundo”, sempre no dizer de Lorca.
O violonista Juan Gómez “Chicuelo”. Foto: Carol Vidal
Pois o duende dançou sua dança invisível, inflamou e chamuscou o ar, tomou desprevenido nosso espírito e se fez inteiro manifesto no concerto de jazz flamenco que reuniu, no Jazz na Fábrica do último dia 25, o duo de guitarra e piano de Juan Gómez “Chicuelo” e Marco Mezquida com o percussionista convidado Jacobo Sánchez. No palco, três músicos de personalidade, origem e gênio diferentes. Juntos, porém, despertam um único e mesmo duende, tal a temperatura do fogo e o ponto de fusão timbrística que atingem.
Marco Mezquida e Jacobo Sánchez. Foto: Carol Vidal
“Chicuelo”, 49, musical até quando afina o instrumento, carrega com drama e paixão a velha alma do flamenco, abraçado à guitarra espanhola (distinta de qualquer outra no mundo) como a uma companheira antiga, uma amante a quem conhece em cada centímetro. Mezquida, 30, faz um piano solar, num jazz luminoso e impressionista, às vezes quase afrancesado em Ravel e Debussy, e uma formação clássica que o permite improvisar como quem tocasse uma cadência de concerto para piano. E Sánchez, um prodígio de 20 e poucos anos, é um ventríloquo perfeito de todas as percussões que já cruzaram o Oceano até chegar às suas mãos no Mediterrâneo.
O percussionista Jacobo Sánchez. Foto: Carol Vidal
Vale aqui adiantar o parêntese. Percussão flamenca só se toca com as mãos, sem baquetas. O set disposto no palco chamava atenção. Soube-se depois: além de caixa e pratos de bateria (tudo com as mãos), continha um djembê, que é um tambor africano, uma campana (ou cowbell) típica de Cuba e essa coisa estranha e extraordinária que o cajón, do Peru, espécie de caixote de madeira que se bate entre as pernas e do qual se extrai um som oco e fúnebre.
E se em Cuba se diz, com ar de mistério, que “o tambor fala língua”, na Espanha se diz mais: que o flamenco inteiro é uma língua em que os músicos se comunicam por código secreto. Ensina-se esse alfabeto nas escolas, mas só se fala o flamenco tocando. É nessa fraternidade que o trio amalgama tudo num flamenco febril, numa rapsódia de harmonia, cores, contrastes e dinâmicas extremas, e altamente inflamável em lenho, corda, marfim, pele, alma e sangue.
Lá pelo meio do concerto e dali em diante tudo o que ouvimos, desses três instrumentos, foi um só corpo sonoro, indistinto, maior que a soma – cordas pianísticas que brotam do violão, percussão saída do piano, sons de contrabaixo vindos da percussão. Um só vulcão, uma só lava quente nos atingindo desde os pés até o último fio de cabelo. Como é dito em Lorca do duende de Espanha, essa, a chama que nos faz reféns e sujeitos desse “poder misterioso que todos sentem e nenhum filósofo explica”. Desconfio ser esse o estado de êxtase que aproxima o gozo estético, o físico e também o espiritual (pense em Teresa D’Ávila como Lorca nela aqui pensou), um segredo íntimo, como o que escapou da fala do pianista, num momento de pausa, ao emitir, ainda que baixinho: “Ay, que vivo y muero...”
Regina Porto é compositora, documentalista e pesquisadora musical.
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