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Fred Frith no maldito paraíso
Por Inés Terra*
Fred Frith apresenta “Mais um dia no maldito paraíso”, um disco de estúdio gravado com seu trio de improvisação em 2016. Para o concerto do Sesc Jazz, Frith contou com a participação especial da portuguesa Susana Santos Silva no trompete.
O guitarrista está descalço. Na frente dos seus pés há uma grande pedaleira, uma guitarra, um ebow e outros objetos, como um arco, tampas de lata, um massageador de pés, um pano, uma escova de limpar sapatos e um pincel.
Frith apalpa a guitarra como se precisasse acordá-la aos poucos, percorrendo a região das cordas e toda a estrutura; das tarraxas à pestana, do braço ao corpo.
O som do grupo invade o espaço suavemente, tecendo pequenos comentários e tocando o mínimo, num esforço de contenção. Susana Santos Silva tira um som abafado do seu trompete, através da surdina em movimento, e cria uma atmosfera de impermanência, junto com a bateria sutil e vigorosa de Jordan Glenn e o baixo penetrante de Jason Hoopes.
Nesse cenário, Heike Kiss improvisa imagens projetadas no fundo do palco; copas de árvores e paisagens da cidade alternam-se, enquanto Kiss cria traços, figuras e riscos sobre as imagens.
No fundo, uma hélice na janela e as nuvens passando aceleradas. É uma paisagem de solistas que fazem parte da engrenagem poética dos objetos e das formas e exploram os próprios instrumentos com desejo e intimidade.
A janela se abre e se assomam alguns acordes. A cidade está embaixo. O trompete segura, com seus graves rosnantes, a poluição entre o céu e a rua. As viradas melódicas da bateria desenham as luzes da cidade.
Em cima da noite, Frith improvisa junto à bateria. O guitarrista pega o massageador de pés, uma tampa de metal, e cria sua levada ruidosa e afiada. Logo, fricciona o arco pela tampa encostada nas cordas.
Santos esculpe o som do trompete realizando movimentos com os braços, de um lado para o outro, evidenciando algumas notas e explorando a diversidade de sonoridades a partir dos diferentes fluxos respiratórios. Metade trompete, metade animal, um leque extenso de sopros é articulado e cantado dentro do instrumento.
O baixista cria distorção nas suas linhas, enquanto o bumbo contínuo o acompanha. Frith sustenta o som estridente da guitarra, se acoplando ao trompete.
Os pés em cima da água sem encostar na água.
Escutam-se atritos, sopros, quedas, slides, delays, loops. Se fechar os olhos, perde-se a ideia de instrumento. Há uma floresta de cimento, mas os pés ainda ameaçam entrar na água.
Água no vidro: Frith cria ritmos com a escova na guitarra, Santos sopra notas isoladas, lembrando as nuvens que já passaram.
A voz de Frith se assoma numa fala ininteligível, talvez uma língua inventada. O movimento rápido dos pistões do trompete mistura-se com a voz e com a guitarra sustentada.
Frith cria o riff das tarraxas oscilantes, mudando o timbre, alterando a tensão das cordas. Nesse momento, Glenn e Hoopes se encontram engajados num groove de rock, momento enérgico da experiência musical de uma hora de imersão no som do quarteto experimental.
É um rock progressivo cuidadoso; uma paisagem densa que se transforma gradativamente, transitando por lugares onde o chão escorrega, queima ou abraça os pés.
É “Another Day in Fucking Paradise”.
Inés Terra é musicista e pesquisadora formada em música popular na Universidade Estadual de Campinas. É mestranda em processos de criação musical na ECA (USP) e atua como performer vocal em espaços e circuitos ligados à música contemporânea.