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Omar Sosa Quarteto AfroCubano: ancestralidade, tecnologia e referências híbridas
Por Isabel Nogueira
No domingo à tardinha, na Comedoria do Sesc Pompeia, começa o que seria o segundo dia de show de Omar Sosa no Sesc Jazz.
A figura alta e magra, totalmente vestida de branco, entra no palco com uma vela acesa que deixa sobre o piano e uma fita com a qual agita o ar à sua volta com um único movimento preciso.
O piano de Sosa começa com uma linha melódica levemente orientalizante, acompanhada por um drone nos teclados, para logo disparar vozes pré-gravadas a partir de um sampler e construir vocalizes que dialogam com estas vozes e com a linha melódica construída pelo piano.
Logo depois, José Julio entra no palco tocando uma mangueira e um chocalho de pés, mas passa logo para a marimba e depois para o sax, estabelecendo um diálogo de timbres inusitados com o piano de Sosa.
Em breve, entram baixo e bateria que se unem ao sax e piano, e o que se ouve é muito diferente de um grupo de jazz tradicional: a clave cubana traz a rítmica forte para o que vinha se desenhando como ritual, e se transforma em elemento essencial da música de Sosa, que assimila elementos musicais de diversos lugares.
Nessa breve descrição do começo do show, configura-se o que é o tom do concerto todo: uma amálgama construída entre recursos digitais bem utilizados, elementos experimentais e instrumentos tradicionalmente utilizados no jazz afro-cubano interpretados de maneira inusitada.
A tônica do show é a ancestralidade afro-cubana e africana, no entanto esta já é permeada por outras vivências e experiências sonoras: ao apresentar a banda, Sosa diz que ele, o baterista Ernesto Simpson e o saxofonista e flautista Leandro Saint-Hill são cubanos, enquanto o baixista José Julio Tomás é africano, de Moçambique. No entanto, o detalhe é que todos moram na Europa, como diz Sosa durante a apresentação.
Essa condição de movência entre lugares faz com que o que acontece no palco seja uma música híbrida que mistura elementos e referências de Cuba, África e a música feita atualmente nos países da Europa onde cada um dos músicos mora.
Existe ainda uma vinculação forte com a música eletrônica atual, e no show os recursos digitais são usados de forma hábil e integrada para criar samples e loops, através do uso de teclados ou da flauta com pedais, gerando modificações de timbre e texturas que se misturam aos ritmos tradicionais afro-cubanos e vão além do que se poderia classificar tradicionalmente como jazz.
Elementos do afro house aparecem também, tanto na estética de algumas formas de usar a voz, no uso de toques de bateria que remetem aos beats ou no uso dos chocalhos digitais que Sosa traz nos tornozelos, combinado com o chocalho analógico utilizado por Jose Julio.
A tradição afro-cubana aparece na clave e nos llamados que Leandro apresenta ao público, propondo uma estrutura de perguntas e respostas por meio da qual a plateia sustenta o “y ya voy” e a voz do cantor improvisa trazendo referências e comentários tanto do lugar de origem dos músicos (“ay, mi Cuba linda”), do lugar onde o show está sendo realizado (“San Pablo, como te quiero”) ou de elogios a Sosa (“como un africano verdadero que tiene mucho swing”).
O baixista Jose Julio é um capítulo à parte no show: constrói linhas melódicas que quebram a métrica e constroem contrapontos ora com o tumbao do piano, ora com o guaguancó e com a rumba cubana propostos pela intensa e inventiva bateria de Ernesto Simpson.
O piano de Sosa alterna momentos de lirismo e um toque sutil com outros momentos nos quais a tônica é a rítmica: durante o show, o músico levanta e dança, com movimentos de referências diretas à religiosidade afro-cubana, fazendo com que o tumbao ressoe diretamente no seu corpo e na plateia.
A resposta corporal da plateia vai acontecer apenas no final do show, quando Sosa conclama diretamente a que se levantem.
Ao falar do seu último trabalho, Ilê (“casa, espaço, terra, mama África”), Omar se refere à importância da religiosidade afro-cubana em sua música, e não pude deixar de pensar na importância das mulheres como portadoras das tradições religiosas, e ao mesmo tempo na resistência que ainda hoje sua presença provoca nas questões afro-diaspóricas.
Um detalhe curioso é que a única mulher da banda é uma voz digital, disparada pelo sampler de Sosa.
Presenças e ausências, em uma música afro-cubana repleta de diálogos entre tecnologia, ancestralidade e referências múltiplas, mas também de escolhas.
Isabel Nogueira é compositora performer e musicóloga, Doutora em musicologia pela Universidade Autônoma de Madri, Espanha (2001) e Bacharel em Piano pela Universidade Federal de Pelotas, RS, Brasil (1993). Professora Titular do Departamento de Música do Instituto de Artes da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, professora e orientadora dos cursos de graduação, Mestrado e Doutorado em Música (UFRGS), e Mestrado e Doutorado em Memoria Social e Patrimônio Cultural (Universidade Federal de Pelotas). Suas pesquisas e publicações se desenvolvem sobre os temas de música e gênero, performance, improvisação e criação sonora.
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