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Dorival em Jundiaí, por Carlos Calado
Por Carlos Calado
A plateia de Jundiaí pode se considerar privilegiada. Primeira atração do Sesc Jazz nessa cidade paulista, o quarteto Dorival exibiu, em primorosas releituras instrumentais de canções do mestre Dorival Caymmi (1914-2008), um grau de inventividade, liberdade e coesão, que só os melhores grupos desse gênero musical são capazes de alcançar.
“A música do Dorival nos faz navegar. Ela nos leva ao Sol, nos leva para a Lua”, disse o contrabaixista Rodolfo Stroeter, logo ao início da noite, preparando a plateia para acompanhar as inspiradoras viagens sonoras do quarteto.
A escolha da radiante versão do samba “MiIagre”, para abrir o show, não é gratuita. Com a experiência que acumulam em décadas de carreira, Tutty Moreno (bateria), Nailor “Proveta” Azevedo (sax alto e clarinete), André Mehmari (piano) e Stroeter (baixo acústico) têm consciência de como é rara a química musical que os une.
“Temos muita sorte. Isso é um milagre que aconteceu na vida da gente”, reconheceu Proveta, emocionado, já quase ao final do show. A própria trajetória do quarteto é incomum: formado em 1998, para gravar o álbum “Forças D’Alma” (hoje um clássico da música instrumental brasileira), o grupo só se reencontrou eventualmente, até gravar o álbum “Dorival”, no ano passado.
Em meio a tantas belezas musicais, chama especial atenção o fato de os improvisos do quarteto serem tecidos de maneira essencialmente coletiva. Nada a ver com o hierárquico ritual de grupos de jazz mais tradicionais, cujos músicos cumprem a função de estender o tapete harmônico e rítmico para que o solista desfile, como centro das atenções.
Um dos arranjos mais inusitados é o de “Samba da Minha Terra”. Na introdução, o sax alto remete, com humor, ao clássico “Voo do Besouro” (de Rimsky-Korsakov). Proveta e Mehmari se divertem, brincando com a melodia, num toma-lá-dá-cá hilariante.
Já na dramática “Sargaço Mar”, Tutty demonstra toda sua sensibilidade musical, ao colorir com os sons de seus tambores e pratos as intervenções do piano e do sax alto. Aliás, quem conhece o estilo desse mestre da bateria sabe que ele é capaz de extrair melodias de seu instrumento. Isso mesmo, Tutty é um baterista melódico e criativo, como muito poucos.
Pensando bem, esse quarteto é uma síntese do que já se produziu de melhor na música instrumental brasileira das últimas décadas. Ainda no final dos anos 1970, Stroeter foi um dos criadores do cultuado grupo Pau Brasil, que segue na ativa, em sua melhor forma. Proveta lidera há duas décadas e meia a sensacional Banda Mantiqueira. E Mehmari, mesmo mais jovem que seus parceiros, já se consagrou como um dos grandes instrumentistas e compositores do país.
Não posso falar por toda a plateia de Jundiaí, mas tenho certeza de que alguns, como eu, devem ter saído do show de ontem com um certo orgulho. Em meio à devastadora crise que nosso país enfrenta, essa música brasileira tocada com tanta inventividade e beleza é capaz de nos deixar um pouco mais otimistas. Talvez o Brasil ainda tenha jeito.
Carlos Calado é jornalista e crítico musical
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