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Isfar Sarabski Trio, Shahriyar Imanov e o jazz do Azerbaijão

Foto: Julay Barretti
Foto: Julay Barretti

Por Sergio Molina

Uma nota (o tempo largo) e um acorde.

Uma nota sobre o acorde: silêncio.

Com esses primeiros sons produzidos ao piano, Isfar Sarabski parecia convidar a plateia do Sesc Pompeia, na noite da última quinta-feira em São Paulo, para uma imersão em uma atmosfera musical inicialmente mais introspectiva. Os acordes espaçados e em intensidade baixa sugeriam acolhimento, serenidade, estabelecendo uma espécie de “afinação” especial entre o músico e os ouvintes.

Se os acordes fazem parte do vocabulário musical comum ao ocidente nos últimos quatro séculos, a criação dessa “afinação” primeira é característica fundamental nas práticas orientais. Nascido há 28 anos no Azerbaijão, à leste da Turquia e ao sul da Rússia, Isfar teve estudos tanto em seu país natal quanto nos EUA. E os elementos cruzados dessas culturas são hoje as marcas de sua música.

O universo escolhido para tal encontro é o do que costumamos chamar de jazz, neste caso com piano, contrabaixo e bateria, unidos na busca por espaços abertos para a invenção musical no calor da hora.

Aos poucos, a dicção particular de Isfar ao piano se fazia mais presente, a referência organicamente apropriada a Brad Mehldau com sua desenvoltura na mão esquerda, os ecos de Keith Jarret, mas sem nunca abandonar sua essência oriental. Na música do azeri o virtuosismo, ainda que esporádico, jamais é gratuito. Aparece como uma necessidade composicional, uma estratégia para alavancar fluxos texturais, incrementar a energia de troca com seus colegas no palco e provocar uma maior vibração na plateia, que, por sua vez, logo é desconstruída. E é nas tramas desses contrastes que seu estilo jazzístico se impõe.

Ao tranquilo Preludio inicial seguiu-se uma reinvenção improvisada sobre um fragmento de O Lago dos Cisnes, do compositor russo Piotr Tchaikovsky (1840-1893), e uma delicada interpretação do standard Bewitched, Bothered and Bewildered (Rodgers e Hart), clássico dos musicais da Broadway dos anos 1940.

As fricções e fusões musicais de ocidente e oriente ficaram mais acirradas quando Shahriyar Imanov, também do Azerbaijão, entrou em cena com seu Tar, instrumento de cordas de origem persa.

Agora em quarteto e em uma disposição em quadrado no palco que só a arena do Sesc Pompeia possibilita, os músicos passaram a interagir musical e visualmente, como se estivessem em uma situação de laboratório, de ensaio.

Um dos pontos culminantes, mais ao final, foi a autoral The Edge (Sarabski). Aqui, as regularidades rítmicas convencionadas da música europeia aparecem desconstruídas em ciclos de 12 pulsos, organizados assimetricamente em 3 + 3 + 2 + 2 + 2. O timbre do Tar se mescla ao do piano em escalas e harmonias inusitadas.

Há algo especial na música de Isfar que resulta de um consistente, e até há poucos anos improvável, intercâmbio entre culturas essencialmente distintas. Assim como aconteceu na passagem do século XIX para o XX, com o surgimento de uma nova música (popular) nas cidades portuárias da América – como Rio de Janeiro, New Orleans, Recife e Havana –, nesta segunda década do século XXI existem infinitas possibilidades de interação cultural nos portos virtuais da internet.

E a cada nova troca uma nova concepção. Uma concepção que pode acolher as sutilezas das localidades mais particulares, se arriscar na diferença e, como vimos nesse espetáculo do Sesc Jazz 2018, não se fechar às transformações do mundo.

Sergio Molina é compositor, coordenador-geral de música na Faculdade Santa Marcelina e autor de Música de Montagem (Editora É Realizações, 2017)

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