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Um passo à frente e você não está no mesmo lugar
Fred 04, vocalista do Mundo Livre S/A (foto), foi mentor do Manguebeat ao lado de Chico Science. O encontro das diversas manifestações artísticas originadas no movimento guia a programação do Sesc Pinheiros na Virada Cultural 2014
Ninguém esperava no “Sudeste maravilha” do início dos anos 1990 que um grupo de músicos nascidos ou radicados no Recife fincaria ideologicamente uma antena parabólica na lama e, adotando esta imagem como símbolo de criação e divulgação, roubaria a cena artística brasileira. Mas foi isto o que aconteceu. Autointitulados “mangueboys” e porta-vozes do movimento que batizaram como Manguebeat (ou Mangue Beat), esses músicos sonhavam em produzir uma diversidade sonora tão viva quanto o ecossistema dos manguezais, vegetação característica da costa pernambucana.
Encabeçado por nomes como Chico Science e Fred 04, o movimento trouxe à tona em 1994 dois discos que movimentaram o cenário musical do país e deram um nó – sob elogios da crítica especializada – nos ouvidos europeus e norte-americanos: “Da Lama ao Caos”, álbum de estreia da formação Chico Science & Naçao Zumbi, e “Samba Esquema Noise”, da banda Mundo Livre S/A, esta liderada por 04, que dois anos antes já havia escrito o manifesto “Caranguejos com cérebro”, espécie de documento norteador das ideias do grupo.
Se o Manguebeat tivesse uma receita, ele misturaria ritmos como o maracatu e o samba ao rock, punk, hip hop, funk e música eletrônica. Se ele tivesse uma bandeira, empunharia a crítica ao pretenso “progresso” do Nordeste e suas derivações – abandono social, miséria, fragilidade da urbanização desenfreada. Na prática ele reunia todos esses elementos, porém escapando a rótulos. “Um passo à frente e você não está no mesmo lugar”, já cantava Science na letra “Passeio No Mundo Livre”.
O caldo sonoro entornado pelo Manguebeat ainda hoje reverbera, abraçando linguagens como a cultura digital, as artes visuais, o cinema, a performance e a literatura. Na Virada Cultural 2014, uma amostra de todas estas manifestações ocupará o Sesc Pinheiros, por meio da programação temática “Manguebeat: Entre Mangues e Marginais”.
A seguir, leia depoimentos sobre o Manguebeat enviados especialmente para a EOnline por alguns participantes da Virada do Sesc Pinheiros. Na sequência, disponibilizamos o guia completo da programação da unidade.
POMBAS URBANAS
(o grupo participa do Cortejo Festivo e das intervenções Mangueboys, Caranguejos com Cérebro, ambas no sábado)
“O Manguebeat foi para nós um dos movimentos mais importantes do país desde a Tropicália. Pensado e criado em um contexto de intensa crise econômica e de políticas culturais excludentes no estado de Pernambuco, o movimento surge com a proposta de subverter esse quadro a partir de uma mistura de sons, imagens e influências que refletissem as relações entre o global e o local, o moderno e o tradicional, que coexistem nos grandes centros urbanos. Desta experimentação surge uma cena única com propostas revolucionárias e pretensões grandiosas, que alteraram o cenário cultural brasileiro. O Manguebeat para nós significa essa mudança, essa subversão através da arte e da cultura, acreditamos ser esse o maior legado de Chico Science!
Chico Science nasceu em Peixinhos, uma comunidade periférica de Recife. Nós somos de São Miguel Paulista, que tem uma cultura nordestina muito forte. Lino, quando criou o grupo, escolheu trabalhar na periferia, pois o jovem traz consigo essa bagagem cultural de suas raízes. Somos quase todos filhos de nordestinos. Lino até nos apelidava de Jagunço de tênis Nike. Nós, as Pombas Urbanas, somos os caranguejos de São Paulo. O que era o símbolo da paz, do Espírito Santo, na cidade passou por uma mutação para sobreviver. É a pomba com bituca de cigarro, com chiclete colado… A imagem da pomba tem uma clara similaridade com esse imaginário do movimento Manguebeat, o que está ligado também à questão do mangueboy lá de Recife. A pomba voa pela cidade tentando sobreviver. O jovem, em seu meio, tenta sobreviver com dignidade e, assim como os mangueboys, expressar a sua poética”.
SIBA
(Siba e a Fuloresta se apresentam no sábado, às 22h, no Teatro Paulo Autran)
“O Mangue Beat foi um ‘não movimento’, sem proposta estética claramente definida, uma tomada de postura ativa por parte dos músicos de minha geração no começo dos anos 1990 em Recife, fundamentada basicamente na colaboração, admiração e respeito mútuos e retomada do amor ao lugar em que se vivia.
A história do Mangue Beat se confunde com a minha no seu começo. Éramos todos parte de uma cena que se construía na cidade do Recife e o Mangue Beat foi a formulação perfeita para aquele momento. Não posso dizer que ‘cruzou minha vida’, e sim que nossas vidas naquele momento estavam todas cruzadas na cidade em que vivíamos.”
RODRIGO BRANDÃO (ZULUMBI)
(o grupo se apresenta no domingo, às 13h30, na Praça)
“O Mangue Beat é o mais importante manifesto artístico nascido no Brasil desde a Tropicália. Nada menos que isso. Me fez descobrir o orgulho de ser brasileiro. Enquanto criança criada durante a ditadura militar, teve efeito ultrasom & multicor.
Me deparei com o Mangue Beat numa noite de outono sorridente, na BH de 1993. Meu amigo Edu K., com quem viajava prum show do lendário Defalla na capital mineira, insistiu pra eu ver e ouvir aquela rapazeada. Curti muito o Mundo Livre S/A e pirei demais em Chico Science & Nação Zumbi! Tanto é tamo aí mandando brasa, junto e misturado após 21 estações.”
OTTO
(o músico se apresenta no domingo, às 14h, no Teatro Paulo Autran)
“Cara, em 1989 fui pra França, na volta morei um ano em São Paulo e depois voltei pra Recife. Trabalhei numa produtora de imagens onde se fazia o programa eleitoral e o candidato da época era o senador Humberto Costa (PT). Compus a música dele e chamei Chico pra cantar. Ele veio, e desde aquele dia fui chamado pra tocar na Chico Science & Nação Zumbi. No primeiro show com eles, o cara da outra banda que ia tocar naquela noite me chamou pra tocar também. Ninguém tinha congas, então comecei a fazer a percussão da Mundo Livre S/A também. O cara era Fred 04 e eu sou o único cara que fez parte das duas bandas, Chico Science & Nação Zumbi e Mundo Livre S/A.
O Manguebeat foi uma revolução sonora, artística, social, dos anos noventa. Talvez a confirmação do Nordeste contemporâneo, em todas as áreas: cinema, teatro, moda, design e tecnologia. Abrimos esta porta que já estava moldada há séculos. Fizemos a música brasileira rodar e girar. Somos o Nordeste que se muda, complexo, sentimental. Temos uma grande contribuição a dar para nossas gerações. Não só por lá. A lama respingou no Brasil todo. No mundo…”.
Manguebeat: Entre Mangues e Marginais
Guia da programação do Sesc Pinheiros na Virada Cultural