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Com as calças na mão – Brasil 1 X 1 Chile
Entre junho e julho um assunto domina os bares, táxis, reuniões de família, encontros de amigos jornais e redes sociais: a Copa do Mundo de Futebol. No Sesc, não é diferente. O Sesc na Copa apresenta uma programação para refletir sobre o futebol e valorizar seus aspectos culturais.
Parte do projeto acontece online, com a publicação do "Visões da Copa", uma série de charges e crônicas sobre os jogos da Seleção Brasileira, publicadas nos dias seguintes aos jogos do Brasil ou após o final de cada rodada.
Nesta edição, os comentários sobre o jogo Brasil X Chile. Acima, o olhar do cartunista Alpino e abaixo, o texto do jornalista Marcelo Backes. Boa leitura!
Com as calças na mão – Brasil 1 X 1 Chile
Por Marcelo Backes*
No bolão de Linha Anharetã joguei meus três reais num 5 X 2 pro Brasil. Sou esquisito e preciso fazer jus à fama, sem contar que ganharia sozinho. Segundo meu pai eram mais ou menos 90 apostadores, ou seja, todos os moradores do lugar. O caminho da roça ao Rio é longo e poucos por lá o compreendem. Se eu dissesse que o jogo seria 1 X 0 me enterrariam na vala de um lugar-comum, e eu além disso não ganharia nada, mesmo acertando o resultado.
Vou torcer pelo Chile, por causa do Aránguiz, ouvi meu cunhado dizer, depois lembrei que meu cunhado já morreu. Senti saudades, mas antes lhe respondi que se fosse por isso seria melhor o Brasil ganhar, assim o Aránguiz voltaria mais cedo pra treinar com o Inter e nos dar o título do Brasileirão no ano da Copa do Mundo. Sem contar o Vargas, que andou lá pelas bandas da Arena Lixão e também defende o Chile.
Decidi assistir o jogo pela primeira vez na Globo, aguentar o Galvão, afinal de contas eu queria sair de mim e falar com o povo no papel de cronista. Difícil, pra quem sente tanta afinidade com Messi, não pelo talento, mas pela síndrome de Asperger. Peço à multidão que pelo menos não aplauda, não quero me perguntar o que foi que eu fiz de errado. No jogo, em poucos minutos o narrrrrrrrador global já viu dois pênaltis pro Brasil e um gol mal anulado, sem contar o fato de ter dito que uma entrada do Aránguiz havia sido maldosa, o que quase me fez adotar a opinião do meu cunhado morto.
O Brasil fez 1 X 0 num gol que Galvão insistiu porque insistiu ter sido de David Luiz. A FIFA atendeu seus pedidos, enquanto Sampaoli se aquietava um pouco em seu romantismo descabelado e hiperativo. Se bem que o homem é careca... Sentindo um ressaibo amargo, eu já achava que seria melhor o Brasil perder, a crônica talvez resultasse melhor. A arte de qualidade pode nascer apenas no terreno fértil do sofrimento. Quando se ganha é melhor festejar mesmo, viver a vida, em suma. Ronaldo gaguejava com sua voz nasalada, parecendo sua própria imitação, e o Chile logo empatou depois de Hulk Popozuda entregar uma bola de graça aos adversários. Sanchez, baita jogador!
E aí a coisa ficou osca*.
Nem Luiz Gustavo com sua cara de sambista carioca dos anos 50 jogava bem, e eu já estava cogitando o maior Mineiraço. Fred, quando se mexia, perdia um gol, o Brasil jogava com 10, Mena levou um cartão amarelo e Galvão proibiu Arnaldo de mencionar o “próximo jogo” em relação a qualquer chileno, ficasse este de fora ou não.
Ronaldo tinha certeza que ganharíamos no segundo tempo, que foi medonho, depois mostrou a mesma certeza na prorrogação, que deve ter tido mais ou menos um minuto e meio de bola rolando. Jogo picotado, só faltas, e Neymar nada resolvia. Os ingredientes da tragédia estava dados, e de certo modo uma seleção que vai com Jô para a Copa do Mundo, tolera a inoperância falha e constante de um Daniel Alves, a merecia. Só Hulk, depois de entregar aquela bola preciosa, jogava bem, e tentava alguma coisa. Hulk é um péssimo jogador que muitas vezes acaba jogando bem.
A bola de Pinilla no travessão, eu já nem me lembro mais, nem quero me lembrar, se foi ao final do jogo ou ao final do primeiro tempo da prorrogação, antecipava a fortuna que eu nem sabia ainda que nos bafejaria. A sombra do estádio descia sobre o campo e sobre minha cabeça, tomando conta de tudo. Ouvi um trovão, foi apenas um rojão, quase vi o véu do templo se rasgando pelo meio. No campo não acontecia nada, a não ser quando o Chile pegava a bola e os cabelos de 200 milhões de brasileiros ficavam em pé. Falsos sofredores, torcedores de meia pataca exultavam ao se ver no telão. Num escanteio, imaginei que David Luiz poderia decidir o jogo, fazendo um gol de verdade, e logo me dei conta de que num mundo coerente eu deveria ter pensado em Jô com seus oito metros de altura, sobretudo porque ele estava rodeado de pigmeus chilenos.
Mas eu não pensei em Jô.
Tudo começou a se arrastar, a se arrastar cada vez mais, e eu tinha certeza que era em direção ao brejo. A vaca se afogaria como no pior dos pântanos da minha infância, a copa de 82, e dessa vez com um futebol amesquinhado, ainda por cima.
Pênaltis. Depois de quatro perdidos por ambas as seleções, o quinto dos chilenos, batido pelo mesmo Jara que antes fizera o gol contra, explodiu no poste, redimindo o Brasil, que já fora salvo pelo travessão na bomba de Pinilla.
Foi com as calças na mão, como tenho certeza que todos os anharetenses estão dizendo, e eu espero que tenha sido pela última vez nessa copa. Pelo menos os referidos anharetenses não precisaram decidir numa briga de faca se o que valeria no bolão era o resultado do tempo normal ou da prorrogação. Depois de tanto sofrimento, em todo caso, quase nem dá pra sentir alegria, apenas alívio. No futebol, pelo menos, eu quero ganhar. O pior é que James Rodriguez, o melhor jogador da copa até agora, fez mais dois gols, e um deles foi um golaço...
*"Osca" é gauchismo que significa o mesmo que "escura, turva", ou seja, a coisa ficou preta; onomatopaicamente, o adjetivo já soa ameaçador, nem um pouco auspicioso.
*Marcelo Backes é escritor e tradutor, autor dos romances Três traidores e uns outros (Record, 2010) e O último minuto (Companhia das Letras, 2013), entre outras obras. Em setembro de 2014 publica o romance A casa cai, também pela Companhia das Letras. Doutor em Germanística e Romanística pela Universidade de Freiburg, na Alemanha, e professor da Casa do Saber do Rio de Janeiro, verteu ao português mais de 30 obras da literatura alemã, entre clássicos e contemporâneos como Goethe, Schiller, Arthur Schnitzler, Franz Kafka, E.T.A Hoffmann, Heinrich von Kleist e Ingo Schulze. Organiza a publicação das obras de Arthur Schnitzler pela Editora Record e coordena a coleção de clássicos Fanfarrões, Libertinas & Outros Heróis pela Civilização Brasileira. Nasceu em Campina das Missões, RS, mora no Rio de Janeiro e é torcedor do Internacional e da Seleção Brasileira.