Sesc SP

Matérias do mês

Postado em

Chegou a hora

Charge: Jal
Charge: Jal

Por Olegário Machado Neto*

O autor,Professor de Educação Física e técnico do Sesc São Paulo, propõe a utilização do conceito "suspensão voluntária da descrença" utilizado na área do cinema e do teatro, para deixar de lado a realidade brasileira durante os 31 dias da realização da mais fantástica explosão de sentimentos que a sociedade contemporânea soube produzir: a Copa do Mundo de Futebol no Brasil!

Pra frente Brasil!

Proponho o seguinte desafio: lançar mão de um conceito muito utilizado no teatro e no cinema, conhecido como "suspensão voluntária da descrença" - aquela situação que abstraímos a razão, a lógica e mergulhamos na história que está sendo encenada mesmo sendo inverossímil, fantástica. Sugiro dispensar por exatos 31 dias,  a leitura dos "jornalões" diários e suas manchetes sobre a crise da hora, abstrair as capas da Veja e da Época - tudo bem, vai..., a capa da Carta do Mino e do “Capital” das estatais também, pra sermos neutros -, deixar de registrar as imagens que Willinan Bonner e seu semblante de moço sério que só fala a verdade nos brinda todos os dias, os comentários lúdico-raivosos e por vezes reacionários do Boechat ,  incluindo, lógico,  nessa lista os sites, blogs e redes sociais, sobretudo, aqueles que se arvoram a contar a "tragédia brasileira" e a sua triste sina.

Sugiro, pois,  contornar a leitura sobre os conflitos engendrados pelos chamados  grupos sociais organizados, à esquerda e à direita, que se valem da sociedade desestruturada diante da política enferma, envergonhada e subordinada à disputa da hora e seus acordos.  Até o texto primoroso do Nuno Ramos publicado pela Folha no último dia 28 de maio sugiro que seja visto como "suspeito" e suas suspeitas devem ser colocadas ao lado no citado período. Quero falar, ou melhor, quero propor um exercício de fixar o pensamento numa circunstância que pode soar como ingênua para alguns e para aqueles que apreciam uma "teoriazinha conspiratória", provavelmente será identificado como uma alienação. Pode até ser. Falo em reconhecer que estamos a poucos dias, menos de uma semana na verdade, de começar a Copa do Mundo de Futebol no Brasil!

O maior espetáculo da terra está prestes a iniciar-se, no qual dramas humanos envolvendo todo o tipo de enredo serão contados e mostrados ao vivo para todos nós. Na verdade, para o mundo todo! E tudo isso a partir daqui, ou melhor, de Manaus, Cuiabá, Recife, Fortaleza, Natal, Salvador, Brasília, Belo Horizonte, Curitiba, Porto Alegre, Rio de Janeiro e Itaquera. Sim, I-ta-que-ra -  pedra dura ou "pedra que dorme" (mais uma piada pronta?) em tupi - como indica as placas de orientação  colocadas nas principais ruas de São Paulo.

Heróis serão transformados em vilões, anônimos até então, vão ser aclamados como personagens principais de enredos épicos. Guerras serão interrompidas, "guerras" serão forjadas, histórias serão lembradas e muitas reescritas, enfim, durante esses próximos dias, veremos e viveremos momentos inesquecíveis da mais fantástica explosão de sentimentos que a sociedade contemporânea soube produzir.

Tá bom, eu sei, que o McDonald's, a Budweiser, a Adidas, a Coca-Cola, até o Itaú estão por trás e "por cima" dessa história toda. Que Felipão e Neymar estão com "as burras" cheias de Euros, Dollars, Reais, Yuans, sei de tudo isso. Sei também dos Marins, dos Valckes, dos Sanches, sei até da Joana Havelange. Como esquecê-los? Por outro lado, sei ainda que em boa parte dessa má vontade e tentativa de criar o anticlímax,  é uma resposta “das elite” à tentativa desastrada de faturar a Copa como mais um feito a ser incluído no rol do “nunca antes na história deste país...”. Não, não se trata de propor um contágio em massa da síndrome da “desmemoria” nem tão pouco de uma mobilização, uma nova “corrente pra frente” para ver a pátria de chuteiras. Não, até porque depois que o Millor aprimorou a famosa frase do inglês Samuel Johnson, “O patriotismo é o último refúgio do canalha. No Brasil, é o primeiro ” sabemos bem como essas histórias começam e terminam.  O que proponho é apenas uma forma de trégua, dessas que estamos acostumados a fazer por ocasião do carnaval ou quando o nosso time se sagra campeão, o que no meu caso, não ocorre desde 1973.

E para dar mais sentido  à ideia de espetáculo, sugiro a incorporação de um único adereço compondo o figurino: a camisa amarela! Não a do Ari Barroso que cantava a Florisbela na avenida e que só voltava na 4a. feira de cinzas. Não. Falo e sugiro a do "Pacheco", aquela que usávamos quando entoamos a “A taça do mundo é nossa”, o "Pra Frente Brasil", o "Voa Canarinho Voa".  Aquela mesmo, que mordíamos quando Dunga travava à bola, adversários, árbitros e quem mais tivesse à frente em 1994, dando sentido ludopédico à magistral "Águas de Março" do Tom - "é pau, é pedra, é o fim do caminho!". Isso mesmo. Aquela amarela que queríamos tirar pra tapar a boca do Galvão quando grunhia "RRRRRRonaldo é o nome dele!" para ficarmos livres do som incomodo e podermos apreciar os gols do "fenômeno" quando ele só jogava em 2002 e não falava. É, a amarela, não importa se nova ou velha, da Adidas ou da Nike, mesmo porque será sempre fabricada na China. Mas quem ainda tiver,  pode ser aquela da Athleta, lembram? Aquela de algodão, que deformava com o uso, que tinha 3 estrelas sobre o nome compondo a marca. Aquela da Copa de 70, do Pelé, do Tostão, Rivelino e companhia. Não importa o tempo, o tipo, o modelo, sendo amarela é o que vale.

Ah, podemos abrir uma única exceção: uma azul, modelo retrô, com gola e decote em "V", o histórico "manto sagrado" de Nossa Senhora Aparecida, como definiu o “Marechal da Vitória” e utilizada na final de 1958. Mas só se for o modelo original, pra não confundir com "Les Bleus" de tristes e recentes episódios.

Com a suspensão consciente sobre a realidade nos cerca,  poderemos concentrar nossa atenção apreciando a excelência do talento nacional diante do futebol prosaico de resultados - os famosos "ferrolhos" da Itália, Inglaterra, Alemanha, Uruguai e outras equipes derivadas.  Poderemos quem sabe, reencontrar o futebol poético do Brasil, como definiu Pier Paolo Pasolini se referindo ao inesquecível 4x1 da final da Copa de 70, Brasil e Itália. Tudo bem que nos tempos atuais o nosso estilo, por vezes, não tem sido tão poético assim – lembram-se do Felipe Melo em 2010 na África do Sul? Além disso, teremos, provavelmente,  outras companhias a “declamar” sonetos com os pés, como os hermanos argentinos e os já citados “Les Bleus” da França. Provavelmente, veremos “solos” da guitarra portuguesa de um outro Ronaldo, aquele precedido por um Cristiano da Madeira. Fico com dúvidas sobre como classificar a performance da Espanha e de como Pasolini definiria o  "tic-taca" da "Fúria" - besta ou bestial? Mas estejamos atentos, porque pode ser que tenhamos momentos de poesia espanhola nos nossos gramados.

Voltando a 2014, serão apenas 31 dias de abandono ao posto dessa espécie de sentinela da liberdade que a mídia quer nos impor.  Penso que até que o baiano Cipriano Barata entenderia. Fico só imaginando  poder acompanhar noites/madrugadas adentro, as mesas redondas intermináveis sobre o detalhe dos gols, das falhas das arbitragens, o lance que ninguém viu, os comentários dos especialistas e eu, curtindo tudo isso, insone no sofá da sala. Tudo bem, não precisa me dizer, sei que pelas manhãs teremos as Anas e as Fátimas entrando "ao vivo" com o "Futebol Merchan" diretamente de estádios ainda vazios, mas já abarrotados de novas esperanças. Mas quem estará realmente interessado nisso, além da Seara?

Nessa hora espero estar dormindo,  sonhando com uma espécie de "chão de estrelas" no qual a bola será disputada por astros nada distraídos, sabedores que a ventura dessa vida, como diria o Orestes, é o gol, a vitória e a taça de campeão!
E ela será nossa! Por que não?


Olegário Machado Neto é professor de Educação Física e técnico do Sesc São Paulo.