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O Velho do Lago Comary

Charge: Baptistão

Entre junho e julho um assunto domina os bares, táxis, reuniões de família, encontros de amigos jornais e redes sociais: a Copa do Mundo de Futebol. No Sesc, não é diferente. O Sesc na Copa apresenta uma programação para refletir sobre o futebol e valorizar seus aspectos culturais.

Parte do projeto acontece on-line, com a publicação do "Visões da Copa", uma série de charges e crônicas sobre os jogos da Seleção Brasileira, publicadas nos dias seguintes aos jogos do Brasil ou após o final de cada rodada. 

Acima, a segunda charge, feita pelo cartunista Baptistão. Abaixo, leia a crônica escrita pelo jornalista Flávio Carneiro

O Velho do Lago Comary

Por Flávio Carneiro

Madrugada fria. Os craques canarinhos dormem a sono solto na concentração, em Teresópolis. Chegaram esta noite de São Paulo e agora descansam, sem saber que lá fora, de algum ponto ao redor do lago Comary, surgindo no meio da neblina como se fosse uma alma de outro mundo, magérrimo, cabelos grisalhos batendo no ombro, longas barbas desgrenhadas, o corpo curvado se apoiando num cajado, eis que ele surge.

- “Pensei que não viesse mais”, o velho me diz.
- “Não foi nada fácil driblar a segurança”, respondo.

O velho apontou um banco de pedra e nos sentamos ali.

- “E então?”, perguntei.
- “Então o quê?”

Fiquei olhando para ele.

- “O jogo, Mestre, o que o senhor achou do jogo?”
- “Ah, o jogo. Sinceramente, não sei por que você não para com essa mania. É toda Copa, toda Copa você vem aqui, depois da estréia do Brasil, saber o que eu acho. Não tem mais o que fazer não?”
- “Mestre, desculpe minha ansiedade, não consigo assistir a uma Copa sem suas previsões. Me lembro bem, foi aqui mesmo, às margens do lago, numa madrugada sombria como essa, que o senhor previu a eliminação do timaço do Telê em 82, previu o pênalti desperdiçado pelo Zico em 86, e a goleada da França sobre o Brasil em 98, e mais um monte de coisas.”
- “Só coisa ruim.”
- “Não, o senhor também previu que o Dunga seria um dos destaques do Brasil na Copa dos EUA!”
- “Então, só coisa ruim.”

Fiquei em silêncio. O velho não era fácil.

- “Olha, Mestre, não estou querendo apressar ninguém não, mas aqui está um frio de rachar!”
- “Não estou sentindo.”
- “O senhor não conta.”
- “Nem eu nem aquele gol do Marcelo.”
- “Foi uma fatalidade.”
- “Pois é. O primeiro gol da Copa foi feito por um canhoto. Contra. O segundo foi do Neymar, batendo de esquerda. Isso poderia ter me levado a uma importante previsão mística, dessas que você adora. Só não sei qual.”

Um vento mais forte me cortou o rosto. Olhei bem nos olhos do velho.

- “Mestre, o que vai acontecer? Por favor, me diga o que vai acontecer!”
- “O Fred ainda vai pegar na bola nessa Copa. Pode anotar isso.”
- “Hum.”
- “E o Marcelo não vai fazer outro gol contra. Pelo menos não contra a Croácia.”

Respirei fundo.

- “E o que mais?”
- “A final vai ser Brasil e Argentina.”

Por um momento senti que ele estava falando sério.
Hesitei um pouco, antes de arriscar a pergunta:

- “E vamos ganhar?”

O velho fitou algo ao longe. Talvez não fosse nada, só um olhar perdido. Depois respondeu, sem olhar para mim:

- “Não sei. Tem algum canhoto no time da Argentina?”