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Capítulo 14: A Casa do Avô
Por Ricardo Lísias
Meu avô morreu da forma plácida como os homens da minha família costumam fazer: dormindo, exatamente como o pai dele. A faxineira chegou logo cedo, mas não notou nada. Muitas vezes o senhor Amim só saía do quarto na hora do almoço, mesmo. Quando a comida ficou pronta, ela bateu na porta. Como não ouviu resposta, empurrou-a e o encontrou morto.
O velório aconteceu no casarão mesmo. Depois, os objetos foram separados. Guardamos algumas coisas nos cômodos dos fundos. O imóvel ficou fechado até que três meses atrás, o SESC resolveu alugá-lo. Minha família encarregou-me de cuidar da burocracia. O processo de locação fez-me lembrar de tudo isso.
É muito difícil saber o que meu avô fez no intervalo entre a morte da minha avó e a dele. Surpreendentemente, não encontramos nada escrito nas coisas dele. A morte da esposa retirou-lhe o interesse pela redação de artigos teológicos. Entre os livros que estavam no quarto, muita religião (Bíblias protestantes em vários idiomas, por exemplo), textos sobre cartografia, as obras completas de Camilo Castelo Branco e um exemplar bastante manuseado do Grande sertão: Veredas.
Quando ia ao banco, meu avô caminhava pelo bairro e cumprimentava todo mundo. Lá vai o velho Amim, o avozinho do Ipiranga. No enterro, falo com imenso orgulho, formou-se uma pequena fila na frente do casarão. Do meu canto, eu alternava o olhar entre os visitantes e o rosto pacífico do meu avô, o Monstro da Lagoa, o velho expedicionário, a única pessoa do mundo que sabia tudo de todos os assuntos.