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Aquilo que se pode fazer visível
Por Emilio Fraia *
No ano 2000, a Phaidon publicou Boring postcards [Cartões-postais sem graça], de Martin Parr. O livro, uma coleção de imagens comicamente tediosas de lugares como aeroportos, estações de ônibus, rodovias e edificações cinzentas, fez com que a entrada dos cartões-postais no século XXI se desse assim, por meio de um sorriso de canto de boca, sob a névoa da ironia. As Torres Gêmeas sumiriam da paisagem em 2001 e, em algum momento, decidiu-se que enviar cartões-postais era como adquirir uma pintura kitsch de alguma banquinha de rua, uma caneca de café com a imagem de um muppet baby sorrindo com a avenida Paulista atrás, um fantasminha dançante suspenso por fios de nylon. Presentes bons para dar risada na hora, mas que valem pouco a longo prazo.
O misto de imaginação, estereótipo e memória afetiva na percepção dos lugares, algo muito próprio dos cartões-postais, parecia ter saído de moda para sempre. Em 2014, estive em White Island, uma ilha-vulcão na Nova Zelândia. Fica a cinquenta quilômetros da baía de Whakatane, na porção norte do país – uma cidade tranquila de não mais que vinte mil habitantes, sendo quase metade da população maori. O capitão do barco que me levou até lá, um homem de idade avançada chamado David Plews, fazia esse trajeto desde seus 8 anos.
A certa altura, ele me falou que a ilha muda sempre. Nunca permanece a mesma. De quando era criança para cá, estava muito diferente. O primeiro não-nativo a avistá-la foi o explorador inglês James Cook, em 1769. Na ocasião, Cook escreveu no diário de bordo de seu navio: “nós a chamamos de ilha branca porque foi assim que ela apareceu para nós” (em meio à névoa). Em maori, a ilha-vulcão é conhecida como Whakaari, “aquilo que se pode fazer visível”. O que torna um lugar visível? Como o olho da nossa mente registra uma experiência, uma paisagem? Um lugar existe a partir de que mecanismos do tempo e da memória? Eu lembro muito pouco da viagem que fiz para a Nova Zelândia. Mas White Island nunca saiu da minha cabeça. Em parte, porque é de fato um lugar especial. Mas sobretudo porque naquele dia, antes de voltar, o carro que me levava parou num posto em Whakatane e, junto com um copo de café aguado, eu comprei dois cartões-postais. Um deles, enviei para uma amiga. O outro, colei na porta da geladeira da minha casa. Quando, numa viagem, escrevemos um diário, é comum que, anos depois, ao ler aquelas palavras, a nossa lembrança se transforme naquelas impressões. White Island, para mim, é aquele rochedo que brota do mar com uma nuvem branca pairando no ar – e lembro disso todas as manhãs, e algumas madrugadas, ao abrir a geladeira.
O comentário mais afetuoso sobre viagens, turismo, globalização e cartões-postais quem fez, no entanto, foi o fotógrafo italiano Luigi Ghirri. Colecionador de cartões-postais, achados “nas bancas mais modestas, aquelas que tinham os postais mais velhos e óbvios”, Ghirri vai investigar as relações entre a imagem da paisagem real e suas representações. É do confronto entre o real e os lugares-comuns da imagem dos cartões-postais que ele constrói sua arte.
“E então me dei conta de que a realidade estava cada vez mais se tornando uma fotografia enorme”, diz Ghirri, numa entrevista. O cartão-postal, esse objeto tão emblemático, faz com que a tensão entre o real, a representação e o imaginário se mantenha viva e a cada dia mais cheia de sentidos e de afeto.
* Emilio Fraia nasceu em São Paulo, em 1982. É autor de Sebastopol (Alfaguara, 2018), do romance O verão do Chibo, escrito em parceria com Vanessa Barbara (Alfaguara, 2008, finalista do Prêmio São Paulo de Literatura), e da graphic novel Campo em branco (Companhia das Letras, 2013, em colaboração com DW Ribatski). Em 2012, foi um dos vinte autores selecionados para a edição “Os melhores jovens escritores brasileiros” da revista britânica Granta.
No mês de outubro, quando se comemora os 70 anos de atividades de Turismo Social, o Sesc São Paulo convida o público a conhecer melhor e refletir sobre a história e importância do cartão-postal por meio do Festival de Turismo Paisagens Postais, que acontece no período de 27 de outubro a 11 de novembro de 2018 nas unidades do Sesc em todo o Estado.
Aqui na EOnline apresentamos algumas histórias sobre este objeto tão marcante no universo das viagens – e que, seja como registro histórico, manifestação de afeto ou item de colecionismo, atravessa o tempo e se reinventa de acordo com o contexto histórico e social em que está inserido, a localidade onde é produzido e o propósito que orienta sua confecção.
Boa leitura e boa viagem!
Saiba mais em sescsp.org.br/paisagenspostais