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Meu cinema será tua herança
Por Adriano Vannucchi *
O conceito de indústria está intrinsecamente ligado à linha de montagem, padronização. Pensar na implicação disso na expressão “indústria cinematográfica” ajuda a entender o estranhamento e interesse nos pontos fora da curva, nos diretores que dentro da estrutura produtiva desafiaram o conforto de público, crítica e estúdios com títulos fora do esperado. Nos Estados Unidos, poucos diretores vivenciaram tanto esse conflito quanto Sam Peckinpah, o poeta da violência. O CineSesc apresenta, de 14 a 23 de julho, seus 14 longas-metragens produzidos para o cinema, além de dois documentários sobre seu mais emblemático filme: Meu Ódio Será Sua Herança.
Em seu livro Sam Peckinpah: 'If They Move... Kill'em!' - mistura de biografia com análise crítica da obra do diretor americano –, David Weddle abre a introdução contando sobre duas das primeiras sessões públicas de Meu Ódio Será Sua Herança. A primeira, para 1000 convidados, provocou tamanha revolta e caos que Peckinpah foi aconselhado a sumir do cinema. A segunda foi para críticos. Na coletiva realizada no dia seguinte, críticos e mais críticos massacraram equipe e elenco questionando um filme que, para eles, era uma aberração, em que não havia bons e maus, onde a sujeira e a violência atingiam níveis nunca antes vistos. Após algum tempo de choque e ofensas, Roger Ebert – lenda da crítica cinematográfica americana – tomou a palavra para dizer que por mais que estivesse parecendo que o filme não tinha defensores, aquilo não era realidade. Apenas o impacto era tal que eles não estavam encontrando perguntas para fazer. E completou: “Para muitas pessoas, esse filme é uma obra-prima”. Imediatamente, parte da plateia começou a aplaudir.
Na época, os filmes de Peckinpah provocavam reações extremas de repulsa e adoração. Seria fácil cair no clichê de dizer que as pessoas ainda não estavam preparadas para a sua obra, mas isso cai por terra já que mesmo hoje, os filmes ainda causam impacto e polêmica. A forma niilista com que disseca seus personagens somada à sua estética, sua violência crua em sua brutalidade e, ao mesmo tempo, refinada em sua linguagem, são capazes de provocar reações extremas. Acusações de misoginia e homofobia, somadas à alcunha de “prostituta da violência”, são reflexos da forma quase inconsequente com que o diretor apresentava sua visão da humanidade e seu amor por histórias centradas nas pessoas más, nos bandidos e vagabundos de um mundo em constante evolução e na busca por seu lugar em uma realidade que não os entende – uma definição, curiosamente, que encaixa com a própria persona do diretor. É impossível aprofundar o estudo de sua obra sem refletir sobre sua personalidade, assim como o momento histórico dos Estados Unidos e o momento tanto da indústria quanto da evolução da narrativa cinematográfica.
OS FILMES
De personalidade forte e difícil, agravado por sérios problemas com substâncias lícitas e ilícitas, Peckinpah teve uma carreira irregular e difícil. A mesma falta de concessões que exibia nos filmes, ele apresentava no seu trato com produtores, causando brigas, demissões e alguns casos de filmes retirados de suas mãos para que pudessem ser montados de formas mais palatáveis ao grande público. Seu primeiro filme, o faroeste O Homem Que Eu Devia Odiar (The Deadly Companions, EUA, 1961), já serviu de preâmbulo tanto para temas que seriam caros à sua carreira como para as guerras que se tornariam seus sets. Contratado para dirigir por recomendação do ator principal do filme, Brian Keith, Peckinpah foi proibido de mexer no roteiro e depois disse que as partes do filme que “salvou” foram as que trabalhou com seu ator.
Seu filme seguinte, o melancólico Pistoleiros do Entardecer (Ride the High Country, EUA, 1962), embora ainda não possua a linguagem cinematográfica que se tornaria sua assinatura, já é centrado no tema forte de Peckinpah, da inadequação ao mundo e à sua evolução, ao contar a história de dois velhos pistoleiros em um último trabalho. Juramento de Vingança (Major Dundee, EUA, 1965) poderia servir como um melhor retrato da evolução do diretor se tivéssemos como saber exatamente a intenção criativa do cineasta já que, apesar dos esforços do ator Charlton Heston para proteger a integridade do filme, inclusive abrindo mão de salários para cobrir o estouro no orçamento, foi completamente mutilado na edição, com boa parte de suas cenas sendo perdidas para sempre. Mesmo no caos narrativo, é possível ver os elementos que se encaixariam com perfeição em seu próximo filme.
Meu Ódio Será Sua Herança (The Wild Bunch, EUA, 1969) é considerado por muitos como sua obra-prima, além de um dos mais importantes filmes de faroeste da história. É o resumo perfeito de suas odes aos bandidos, além de ser fundamental pela sua montagem. Se o diretor Arthur Penn tinha impressionado a audiência com o uso da câmera lenta no violento tiroteio final de Bonnie e Clyde - Uma Rajada de Balas (Bonnie and Clyde, EUA, 1967), Peckinpah levou a narrativa a um novo patamar ao misturar cenas em velocidade normal e lenta, com cenas em close e abertas, montadas de forma quase caótica. A linearidade narrativa existe, mas fica quase em segundo plano em uma edição que acaba jogando o público no caos, na impotência de inocentes em meio a um tiroteio brutal. A polêmica em torno desse filme e o pouco público do seguinte, A Morte Não Manda Recado (The Ballad of Cable Hogue, EUA, 1970), o mais próximo de um faroeste “carinhoso” que o conturbado diretor era capaz, somados às histórias dos problemas que ele criava para os estúdios, consolidaram sua posição de pária dentro da indústria e o afastaram dos grandes orçamentos.
Retornou com seu primeiro filme que não era um faroeste, Sob o Domínio do Medo (Straw Dogs, EUA/Reino Unido, 1971), talvez o mais polêmico de sua filmografia. É fácil considerar misógina e pró-vigilantismo a forma como Peckinpah retrata os personagens de Dustin Hoffman e Susan George e os habitantes da pequena cidade para onde mudam, assim como a escalada de tensão que culmina no estupro dela e na reação violenta dele. Menos agressivos são seus dois filmes seguintes, ambos veículos para o astro Steve McQueen. Dez Segundos de Perigo (Junior Bonner, EUA, 1972) é um drama sobre um profissional de rodeios, enquanto Os Implacáveis (The Getaway, EUA, 1972) é um filme de ação que o diretor assumiu trabalhar apenas pensando em sucesso e dinheiro. Também foi o seu maior sucesso no cinema, marcando o momento em que parecia que finalmente consolidaria seu poder dentro da indústria mas, na realidade, marcou o momento em que sua personalidade e seus problemas o colocaram no rumo da autodestruição.
Pat Garrett & Billy the Kid (EUA, 1973) é seu último faroeste e, mesmo com a presença de astros como James Coburn e um jovem Bob Dylan, sofreu dos mesmos males de Juramento de Vingança. Uma batalha na finalização, com os produtores e os montadores tentando chegar a um meio termo entre o que os executivos queriam e a visão original do diretor. Curiosamente, a equipe conseguiu surrupiar do estúdio uma versão anterior aos cortes impostos. Após seu ressurgimento na década de 80, foi possível apreciar a visão que Peckinpah tinha para a história. Seu filme seguinte, Tragam-me a Cabeça de Alfredo Garcia (Bring Me the Head of Alfredo Garcia, EUA/México, 1974), causa discussão mesmo entre os admiradores do diretor. A trajetória de um pianista americano em uma busca pela cabeça do homem que engravidou a filha de um homem poderoso foi definida por David Weddle em seu livro como sendo um repulsivo pesadelo mas, ao mesmo tempo, foi citado por John Woo como sendo um filme fundamental para sua carreira, uma clara influência visual de Alvo Duplo (A Better Tomorrow/Ying hung boon sik, Hong Kong, 1986), o filme em que Woo começou a consolidar a linguagem que o levaria a revolucionar os filmes de ação em Hollywood.
Seus últimos quatro filmes passeiam entre diferentes gêneros e, se não são os mais cultuados do diretor, ainda possuem cenas e momentos que representam fortemente sua narrativa. O filme de espionagem Elite de Assassinos (The Killer Elite, EUA, 1975), o de guerra Cruz de Ferro (Cross of Iron, Reino Unido/Alemanha Ocidental, 1977), a comédia de caminhoneiros Comboio (Convoy, EUA/Reino Unido, 1978) e o suspense O Casal Osterman (The Osterman Weekend, EUA, 1983) podem não ter a força dos anteriores, mas são peças importantes para quem quer visualizar o complexo mosaico que é a sua obra, irregular talvez, mas sem dúvida rica.
Seus filmes eram tão complexos quanto sua personalidade e é interessante perceber os paralelos entre personagens e o próprio diretor. Seus filmes passam sempre um confronto com as autoridades, o establishment. Uma luta parecida com a que o diretor travava por seus filmes. Filmes que podem ser difíceis para alguns por suas temáticas e pelos personagens complexos, mas importantes para a evolução da narrativa cinematográfica como a conhecemos. Ironia das ironias, em sua luta para ser autoral na indústria cinematográfica americana, parte de suas ideias e técnicas extraídas a fórceps do controle dos estúdios acabou assimilada.
Peckinpah disse em uma famosa entrevista para a revista Playboy: “Sou apenas um contador de histórias. Nem tenho mais certeza do que acredito.” Para ele, se o personagem tinha defeitos, eles tinham que ser mostrados sem retoques ou defesas, mas de forma crua. Essa falta de atenuantes é também a alma de seus filmes, um cinema duro, que por trás da crueldade e violência é intensamente humano. Justamente por isso, é tão provocador.
O CINEMA DA DESESPERANÇA
Na segunda metade dos anos 60, consolidou-se uma nova onda de diretores. Influenciados pelo grande cinema americano de diretores como John Ford e Howard Hawks, mas também pelo cinema B produzido direto para Drive-Ins e salas menores por gente como Don Siegel, essa geração deu seus primeiros passos no começo da televisão americana. Isso somado à ressaca do fim dos anos dourados, à Guerra do Vietnã e a desesperança com o Sonho Americano, acabou resultando em uma geração de diretores que produziram filmes complexos, pesados, dentro da própria indústria cinematográfica. De repente, ao invés de simples entretenimento, mais e mais filmes trabalhavam a complexidade da sociedade da época. Se Sem Destino (Easy Rider, EUA, 1969) foi dirigido por Dennis Hopper com baixo orçamento em uma produção de Roger Corman, os grandes estúdios deram espaços para filmes tão complexos quanto. Por alguns anos, diretores como Arthur Penn, William Friedkin (Operação França/French Connection, EUA, 1971), John Frankenheimer (Operação França II/French Connection II, EUA, 1971), Peter Bogdanovich (A Última Sessão de Cinema/ The Last Picture Show, EUA, 1971), Norman Jewison (Rollerball, EUA, 1975) e John Boorman (Amargo Pesadelo/ Deliverance, EUA, 1972) ocuparam as salas de cinema com trabalhos pessoais, profundos.¿¿Friedkin ajudou a mostrar um rentável caminho para os estúdios com o sucesso estrondoso de O Exorcista (The Exorcist, EUA, 1973), e lentamente essa geração acabou perdendo espaço para a seguinte, oriunda das faculdades de cinema. Coppola (com O Poderoso Chefão/ The Godfather, EUA 1972) e Scorcese (Taxi Driver, EUA, 1976) ainda tinha uma obra que discutia com o cinema deles, mas o surgimento de Tubarão (Jaws, EUA, 1975) de Steven Spielberg e Guerra nas Estrelas (Star Wars, EUA, 1977) de George Lucas, mostraram o caminho do cinema-espetáculo, onde a turbulência criativa foi perdendo seu espaço.
O CATÁLOGO
Com edição de Sérgio Leemann, o catálogo da Retrospectiva Sam Peckinpah trata a obra do diretor com a profundidade que ela merece. Além das sinopses e fotos de todos os filmes, os textos esmiúçam cada obra, com análise de linguagem e história, além de críticas diversas pinçadas de jornais. Uma defesa de Sam Peckinpah, que questiona a fama de misógino do diretor, está em “'Sam era uma mulher': um argumento contra a misoginia de Sam Peckinpah”, de Julie Kirgo. Complementa o volume a famosa entrevista para a revista Playboy, em agosto de 1972. Polêmica e agressiva, em sua superfície a conversa parece comprovar todas as críticas que o diretor recebeu, mas que ao ser analisada junto com sua vida e obra, mostra apenas mais uma faceta da difícil tarefa que é entender Peckinpah. O catálogo estará disponível no CineSesc a partir de 16 de julho.
FRASES
Na entrevista da Playboy de agosto de 1972, que pode ser lida na íntegra no catálogo da Restropectiva, Sam Peckinpah foi agressivo e cortante. No texto de introdução, William Murray descreve: “Ele tem o rosto de um homem que lutou muitas guerras – e perdeu algumas”. Durante o “embate” com o diretor, Murray conseguiu frases que explicitam seu pensamento, como os exemplos abaixo:
“Não dá para querer que a violência seja real hoje em dia sem esfregar o nariz do público nela”.
“Eu acho que é errado – e perigoso – se recusar a aceitar a natureza animalesca do homem”.
“Eu amo os marginais. Veja bem, a menos que você se conforme, se entregue completamente, você estará sozinho nesse mundo. Mas ao se entregar, você perde sua independência como ser humano. Então eu prefiro os solitários”.
“Uma vez eu dirigi uma peça de [William] Saroyan na qual um dos personagens perguntava a outro se ele morreria por aquilo em que acreditava. O cara respondia 'Não, eu posso estar errado'. É nisso que me encaixo. Não vou ficar no caminho entre meu público e a história. Eu odeio aquela sensação no cinema de estar mais consciente do que o diretor está fazendo do que aquilo que de fato está lá na tela”.
Talvez possamos discutir a frase acima. Peckinpah pagou um preço alto por seus defeitos, mas também pela luta no que acreditava, seus filmes.
*Adriano Vannucchi é formado em cinema e seu objeto predileto de estudos era Sam Peckinpah. Trabalha na equipe do Portal SescSP, na Gerência de Relações com o Público.