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O amor e a coletividade da Cia. Senhas

Com 15 anos de atuação na cena curitibana, a Cia. Senhas começa a alçar diferentes voos - e isso não quer dizer encenar o mesmo espetáculo em diferentes cidades, não mesmo! A entrevista com a diretora Sueli Araujo não nos deixa mentir

Quando entramos em contato com o pessoal do Sesc Belenzinho para escrevermos esse texto sobre a peça "Obscura Fuga da Menina Apertando Sobre o Peito um Lenço de Renda", logo perguntamos para Alessandra Perechil, técnica de teatro da unidade, quais as razões de programar a Cia. Senhas, uma companhia de Curitiba, na sala de espetáculos do Belenzinho.

"A Cia. Senhas é um grupo que desponta em Curitiba. Tem 15 anos de atividade e recentemente começou a ser mais expressivo na cena de lá, circulando, agora, em diversos festivais: ano passado em Rio Preto, no FIT e também no Fringe - Festival de Teatro de Curitiba, com este espetáculo que abrigamos aqui. É um grupo que vem pouco a São Paulo e experimenta bastante nos espetáculos. Eu vi o primeiro espetáculo deles em 2009 e de lá pra cá só evoluíram na experimentação, na encenação, e isso é bem interessante pra gente".



Quinze anos de atuação fora de um famigerado eixo Rio-São Paulo com certeza produz narrativas que podem se assemelhar às de outras companhias, bem como traz um certo modo próprio de se fazer e articular as coisas entorno da companhia. Na fala de Sueli Araujo, diretora do espetáculo, fica claro que existem os dois casos, como também se depreende que é fundamental o amor à prática, do contrário, as transformações desses anos todos engoliriam a arte do grupo.

Eonline: A peça trata,  à primeira vista, dos conflitos que a ausência da filha que fugiu causa numa família. Não nos parece, em todo caso, a proposição de crítica ou reflexão sobre a unidade da família e outras convenções mais tradicionais. Você consegue apontar uma temática ou uma potência específica da produção? Existem elementos na peça que parecem visar um estranhamento por parte do público. Você poderia falar sobre isso?
Sueli Araujo: Você pergunta se há na peça alguma ligação com a formação tradicional de família. Acho que ela parte um pouco das relações que existem numa família de mãe pai, por que são os universos familiares que estão sendo abordados, sim. Mas, mais que os universos familiares, abordamos os laços, os vínculos. Quer seja com os amigos, pai, mãe, amiga, enfim. São os vínculos que uma pessoa faz no percurso da sua vida e que são expressos de maneiras distintas – unindo-se, no entanto, quando esses vínculos são desfeitos por uma ausência.

EOnline: No espetáculo, a atriz Greice Barros interpreta o pai, e o ator Luiz Bertazzo a mãe. Apesar de cada um estar com o figurino correspondente ao seu personagem, eles não assumem trejeitos, voz e gestos do outro sexo. O que representa essa troca de gênero dentro da encenação?
S.A: Eu acho que é colocar em questão uma fala que está usualmente associada à figura feminina, num tom de voz, numa gestualidade outra. E do homem também. É a forma da fala aparecer num outro corpo, criando novos sentidos. Até pra gente pensar, não há fundamentalmente o desejo de discutir gênero. Mas isto está posto. Parece que a gente só conhece aquelas palavras vindas de um homem ou vindas de uma mulher. Quando a gente troca, quem sabe não se abrem outras percepções, inclusive, sobre o universo familiar?

EOonline: O texto da peça é de Daniel Veronese, dramaturgo que ficou conhecido, dentre outras coisas, pelo trabalho com o grupo El Periférico de Objetos, para depois se dedicar ao que ele chama de teatro de atores, essencialmente como diretor e dramaturgo. Vocês já encenaram "Circo Negro", do mesmo autor. Como chegaram ao texto dele? Existe um diálogo com a produção argentina além da montagem de textos? O teatro brasileiro ainda viaja pouco para a América Latina?
S.A: Começando pela última, sim. Viajamos muito pouco. Estamos realmente de costas para a América Latina. Na Cia. Senhas, por sermos da região sul, portanto mais próximos, temos um pouco mais de contato com nossos companheiros de prática e de continente. Há um desejo de aproximação e não é só meu. Existem companhias no Rio Grande do Sul e em Santa Catarina que estão em contato com produções no Chile, na Argentina, no Uruguai e na Bolívia. Com relação ao texto do Veronese, nós tivemos contato com espetáculos dele em diferentes situações. Passamos por uma aproximação individual com seus textos. Culminando num desejo cultivado silenciosamente. Normalmente, eu escrevia os textos, porém, em dado momento estava a fim de montar textos de outro autor, mas que fosse alguém com quem conseguíssemos dialogar. “Por que não o Veronese?”. Primeiro texto, "Circo Negro", um roteiro, um texto maluquíssimo, encenado com atores e bonecos, da época do Periférico. Ao terminar, nos vimos imbuídos em questionamentos sobre a representação, que é uma discussão recorrente nos estudos da companhia. “O que a gente faz? Pra onde vamos?”. A gente ainda não terminou: vamos fazer um texto mesmo! O Circo... era um roteiro, vamos pegar as palavras dele! E isso nos encaminhou para a "Obscura Fuga da Menina Apertando Sobre o Peito um Lenço de Renda".

EOnline: A Senhas desenvolve pesquisa para além dos espetáculos? Existe uma linha de autores e teóricos que costumam ser revistos e abordados com maior frequência nas produções da companhia?
S.A: Olha, eu acho que nós olhamos com frequência para os estudos do corpo - é algo que nos interessa muito. Passamos por uma tentativa de compreender o que seja um narrador, então Walter Benjamin é uma figura com a qual dialogamos para entender essa questão. Houve um período em que dialogávamos mais fortemente com o Brecht, hoje a gente se afasta um pouco. Rancière e a Partilha do Sensível e o Espectador Emancipado também nos são próximos.

EOnline: A cia. Senhas está na ativa desde 1999. O que é mudou de lá para cá quando o assunto é fazer teatro no Brasil e, especificamente, em Curitiba? Existem espaços para trocas entre as companhias? Como está articulada a classe teatral da cidade?
S.A: Tudo difícil de responder! Sim, mudou pra caramba. Fomos a primeira companhia a colocar um projeto de pesquisa num edital de Curitiba. A gente tinha certeza de que não iríamos passar, mas a gente passou, inaugurando uma ideia de fazer teatro continuado. O movimento de teatro de grupo na cidade, à época, tentava se configurar como alternativa ao teatro comercial, e conseguiu: as coisas se estruturaram, os grupos conseguiram se colocar como alternativa de construção e de envolvimento com a cidade, de outras perspectivas da arte feita lá. Isso mudou as coisas e tem se traduzido em público: os grupos conseguem criar e articular com o público, na medida em que se faz teatro, criando uma comunidade no entorno dos grupos. Esta é uma grande diferença. As dificuldades envolvendo o poder público não mudaram e continuam muito robustas frente ao desenvolvimento dos trabalhos. Mas, antes havia o teatro comercial e um ou outro grupo tentando fazer algo de forma amadora. Hoje, os grupos têm um profissionalismo, uma qualidade, e tentam se articular enquanto movimento de teatro de grupo, buscando interferir nas decisões públicas com relação ao teatro.

EOnline: Como vocês aproveitam, enquanto companhia, o período de se viajar com uma produção? Existe uma preocupação com trocas que vão além do ambiente do palco e da encenação? O que é interessante pra vocês, nas viagens, além de apresentar seu trabalho para outro público?
S.A: Além de apresentar o trabalho para outros públicos, a gente não para de trabalhar: mostrar o espetáculo para as pessoas de São Paulo significa tentar encontrar formas de comunicação e diálogo com essas pessoas. Não é trazer o espetáculo de Curitiba pra cá. É tentar entender esse ambiente subjetivo e coletivo que se coloca ali para tentarmos dialogar. Fazer o espetáculo para outras plateias é se reestruturar constantemente, rever e repensar, tentando entender como a gente dialoga com o paulista. Para isso, são necessários ajustes constantes no espetáculo: isso é o mais importante, essa segunda fase de ensaio, só que agora com um espectador desconhecido, noutro universo. Fazer com que a gente continue desenvolvendo a pesquisa de atuação, de relação com plateia e de estudos corporais, só aprofunda o trabalho, só se aprofunda – e é isso que a gente veio fazer aqui, fundamentalmente. Desfrutar o que a cidade nos oferece também é imperativo – é claro que a gente esbarra em tentativas, mas é um movimento que gostamos de fazer, de estar em contato com o caldo da cidade.

EOnline: Dentre as dificuldades da produção teatral no Brasil, quais seriam os entraves e desafios para manter uma companhia de teatro?
S.A: Fora as próprias humanidades (risos)... É! O teatro é um trabalho coletivo. Com o passar dos anos as pessoas se transformam e essa transformação, no coletivo, precisa ser muito forte, muito pulsante para que se transforme em arte, do contrário, definha. Eu acho que essa é a pegada: conseguir seguir mantendo as individualidades fortemente nutridas, os artistas, todos nós, fortemente nutridos, e conseguir fazer junto. Talvez um dos grandes desafios da contemporaneidade seja fazer algo junto. É algo difícil, complicado, mas único! Fazer junto é um dos elementos. E fazer juntos significa tudo: administrar um espaço, se posicionar politicamente, discutir gostos e referências, ver o outro engravidar, ter filho, assimilar essas figuras no fazer da companhia e compreender que as demandas vão se alterando, pois a gente muda frequentemente. Esta é uma dificuldade e é uma dificuldade relacionada justamente ao próprio viver. São pessoas que mudam e que estão no embate constante.
A outra dificuldade é você se fazer entender. Aquela velha história: seu trabalho é público, ele é feito para o outro, ele nutre a subjetividade. É essa a grande discussão: é esse o lugar do teatro quando ele se confunde com mercadoria, quando ele vira outras coisas que são absolutamente sedutoras na sociedade que a gente vive e que, do ponto de vista do artista, são medíocres. Fazer girar esse negócio, sendo girado por ele, essa mistura o tempo todo do seu fazer e de quem é você nesse fazer, é o ingrediente, para o bem e para o mal, para manter uma companhia. E a persistência, né? Todo mundo trabalha muito em todas as áreas, mas sabe-se que a cultura vem depois de todas as necessidades básicas em grande parte do país. A gente tem uma sede que trabalhamos pra caramba pra manter, e é fundamental pra existência da companhia, além de tentar a continuidade dos artistas que são sempre solicitados e precisam se manter fazendo trabalhos em âmbitos distintos da companhia.
Sem querer parecer absolutamente piegas, mas colocando como uma matéria importante: é preciso ter amor. Senão, cara, tudo vai por água abaixo. Amor e confiança naqueles artistas que querem alguma coisa que não está dada. Os espetáculos todos são a preços populares. Gostamos de fazer dessa forma. É claro que agir assim cria demandas: eu sou professora, o outro é DJ, um é músico e não veio pra cá pois estava fazendo show. Enfim, é nessa hora que retomo o amor: você precisa abrir espaço na sua vida pra se dedicar a outras coisas com rigor, com apuro e o amor é fundamental nesse ponto.
Fora das encenações, a gente desenvolve um monte de projetos, como a Mostra Cena Breve, que funciona como um encontro de companhias da cidade; o Cia. Senhas Aciona, espaço para trazer pessoas que refletem sobre a arte na cidade. Alugamos o espaço da gente – alugamos nada! Um paga a conta de luz, o outro paga o café. Desenvolvemos os projetos no intuito de articular pessoas e ações entorno do teatro e da companhia – isso também ajuda a continuar na ativa.

Depois dessa conversa aberta sobre teatro e a atuação da Cia. Senhas, a gente convida você para apreciar a "Obscura Fuga da Menina Apertando Sobre o Peito um Lenço de Renda", no Sesc Belenzinho! Mais informações aqui!