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Do papel aos palcos e às telas

A arte de contar uma história faz do escritor quase sempre um solitário. Imerso em seu universo, ele cria narrativas e personagens por vezes inspirados em seu imaginário. Cabe ao leitor idealizar cenas e atribuir características físicas aos seres literários. Em alguns casos, a identificação é tão grande que os torna íntimos, como amigos ou familiares. Há tempos, os caminhos para “o não lugar” que a literatura percorre, tem inspirado o cinema desde sua criação.

Na Divina Comédia, poema épico escrito por Dante Alighieri em 1307, o autor narra a saga da conversão do pecador a Deus e sua passagem pelo inferno, céu, purgatório e paraíso. A famosa história inspirou Inferno, a primeira adaptação da Divina Comédia para o cinema, feita em 1911. Nela, o cineasta Giuseppe de Liguoro realizou uma viagem dentro do universo de Dante, retratando anjos, demônios e Lúcifer. Gustave Flaubert também causou furor ao publicar Madame Bovary, em 1857. Por causa do romance, o escritor foi levado a julgamento sob acusação de incentivar o adultério. Seu livro se tornou um dos preferidos pelos cineastas de seu tempo. Em 1933, Jean Renoir lançou a primeira versão de Bovary para o cinema, com Valentine Tessier.

Outra obra literária clássica é Fahrenheit 451, escrita por Ray Bradbury, em 1953. A ficção científica, que mostra a queima de livros como modo de controle da população (em distopia semelhante a 1984, de George Orwell), ganhou uma célebre versão para o cinema, assinada pelo diretor francês François Truffaut.


Capa da edição clássica americada de Fahrenheit 451 (E) e cena da adaptação de François Truffaut (D)

Mas bons personagens ou boas histórias são justificativas para uma adaptação? Não há como precisar os motivos pelos quais uma obra literária transcende o papel. Em geral, as transposições de textos literários para o audiovisual acontecem a partir da interpretação que um escritor, diretor ou cineasta faz de uma obra. Publicações significativas da literatura brasileira como Dois Irmãos, de Milton Hatoum, O Cheiro do Ralo, de Lourenço Mutarelli, Espumas Flutuantes, escrita por Castro Alves, Memórias Póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis e outras tantas, inspiraram adaptações para a televisão, cinema e teatro.

Ao recriar nos palcos do teatro a poesia de Espumas Flutuantes, o ator Pascoal da Conceição trouxe à cena características singulares da obra do poeta que era político, ao mesmo tempo em que escrevia sobre o amor. “É como se os poemas tivessem sido escritos em um ímpeto, uma força maior que ele não podia conter”, explica Pascoal. A sensibilidade de Castro Alves era tamanha, que mesmo ciente da iminência da morte, ele não deixou de registrar suas aflições. No livro, o autor expôs seu temor pelo esquecimento e clamou pela vida.

Como poema e expressão, Espumas Flutuantes encontrou sua forma absoluta. Com a inspiração e o domínio do verso, Castro Alves chegou à uma construção ideal para ser declamada;segundo Pascoal, essa “perfeição” foi a principal dificuldade ao adaptar a poesia para os palcos.

 

 

Uma adaptação literária para a TV, cinema ou teatro para não impõe regras. Mas no caso dos palcos, ela pede uma investigação antropológica sobre a palavra, sua origem, destino e o que a provocou. Segundo Pascoal, um exemplo disso é o poema O laço de fita, trecho do espetáculo, constituído a partir de supostas ações de personagens que culminaram no verso. “O desafio nesse caso, foi porque a cena dramática precedeu o poema e se finda com sua expressão”, explica o ator.

O enredo de Dois Irmãos retrata os desafetos e os conflitos de uma família de imigrantes. O romance, que tem a cidade de Manaus como uma das protagonistas, lida com a essência do homem da Amazônia, influenciado pela chegada dos árabes e a libaneses. O livro inspirou a produção de uma minissérie homônima para a TV, escrita por Maria Camargo e dirigida por Luiz Fernando Carvalho.
Maria levou 15 anos para escrever o roteiro da adaptação de Dois Irmãos. Nesse período, ela materializou meio século de transformações sociais que constituíram a sociedade manauara, formada pelo índio e o caboclo brasileiro. Maria diz que embora a história contenha elementos de ação, personagens intrigantes e conflitos familiares intensos, que facilitariam sua transposição para a TV, a estrutura de saga impôs limites ao trabalho. A mudança da figura do narrador e a ausência de ordem cronológica, também dificultaram esse processo. “Construí uma linha do tempo, organizei os acontecimentos e depois misturei novamente os fatos para contar bem a história”, comenta.

Para a roteirista, adaptar uma obra literária é um grande desafio, pois as transferências de linguagem, do livro para as telas, são as responsáveis pelas experiências de quem está assistindo. “Quando um leitor se torna telespectador, em geral se frustra, porque o personagem imaginado certamente estará representado de forma diferente na tela”, afirma. Isto acontece porque na TV o trabalho de roteirizar é constantemente intermediado, seja pelo autor ou diretor. Portanto, o resultado final de um trabalho tende a ficar muito diferente da ideia inicial.

Opinião semelhante é a do escritor Marçal Aquino, roteirista do filme O Cheiro do Ralo, adaptação homônima do livro escrito por Lourenço Mutarelli. Para Marçal, o livro é uma obra é “fechada” e cabe ao cineasta cabe encontrar sua inspiração através da leitura, um ponto de partida que o leva a criar uma história para o cinema. O roteirista entende que uma boa adaptação é aquela que dialoga com o livro, não a que o coloca na tela, até porque isso não é possível, uma vez que a matriz literária é diferente da cinematográfica. “Seria ingênuo fazer alguma comparação. O que acontece nas adaptações é que há bons diálogos com os livros e diálogos que são equivocados”, explica Marçal.


Selton Melo em cena da adaptação cinematográfica (E) e capa do livro O Cheiro do ralo (D)

Em O Cheiro do Ralo, um protagonista sem nome que compra e revende tralhas, tem de permanecer em seu ambiente de trabalho convivendo com o mau cheiro, causado por um ralo quebrado no banheiro. Com uma narrativa quase poética, Lourenço descreve as maluquices do vendedor e suas teorias de conspiração. “Eu achei que o tom do livro deveria ser o mesmo do filme. O envolvimento dos atores com a história foi enorme, eles faziam pequenos solos”, comenta Marçal feliz e satisfeito com as atuações e semelhança com a história original. Para ele, O Cheiro do Ralo talvez tenha sido o livro mais simples com o qual trabalhou porque Mutarelli, além de exímio dialogista, possui uma escrita visual. Segundo Marçal, a mistura de um roteiro bem estruturado e interpretações repletas de improvisos, tornaram a produção leve e agradável.

Em verdade, quando uma história é boa, ela se permite ser contada de várias maneiras, como as narrativas de grandes livros, quando adaptadas em filmes, séries ou peças teatrais. Para falar sobre esse assunto, o Sesc São Paulo convida o público para uma conversa sobre Literatura nos Palcos e nas Telas, no dia 9 de maio, quarta-feira, às 20h, no Sesc Avenida Paulista. O encontro, com entrada gratuita e retirada de ingresso uma hora antes, contará com a presença do escritor, cineasta e jornalista José Roberto Torero, da escritora e roteirista Sabina Anzuategui e do ator e dramaturgo Gabriel Miziara.

Para discutir a fundo temáticas relacionadas à literatura e sua transposição para o audiovisual, o SescTV estreia dia 14/5, às 21h, a segunda temporada da série Super Libris, dirigida por José Roberto Torero. O programa, que também fala sobre as releituras de Dois Irmãos, O Cheiro do Ralo e Espumas Flutuantes, convida autores novos e consagrados da literatura brasileira para uma conversa sobre o universo da leitura, os caminhos da criação do livro, técnicas, estilos, críticas, influências e suas inspirações.