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Trotsky: enclave autonomista X revoluções esmagadas

Cena de “Trotsky – Peça para Televisores e não Televisores” do Coletivo núcleozonaautônoma.
Cena de “Trotsky – Peça para Televisores e não Televisores” do Coletivo núcleozonaautônoma.

Apreciação Crítica do Espetáculo “Trotsky – Peça para Televisores e não Televisores” do Coletivo núcleozonaautônoma. Mostra de Teatro Político no ABC: identidade e resistência.
Apresentação no teatro do Sesc Santo André – 14 de abril de 2018. 


A INSURGÊNCIA DE OUTRORA

A larga tradição do teatro político no ABC encontrou no Núcleo Zona Autônoma um dos seus mais novos e vigorosos expoentes. Com pouco mais de 9 anos de atividade, criado sob a aguda influência das ideias do anarquista norte-americano Hakim Bey/Peter Lamborn Wilson, o “NZA” vem desbravando a selva pós-moderna dos palcos paulistas com suas montagens bomba-de-AUTO-destruição-em-massa (com destacada verve feminista militante) praticando o que há de mais radical no teatro guerrilha brasileiro.

Ao longo dos anos, pude acompanhar muitas experimentações artísticas que mergulhavam nas temáticas social-econômica-políticas (ocorridas antes do surgimento do “NZA”) para retratar nossa realidade de periferia do capital em uma região outrora hiper-industrializada, que hoje tem seu “forte” no setor de serviços, metamorfoseada em um aglomerado de cidades-dormitório com taxas de (subemprego) desemprego e violência altíssimas.

Dentre tantas insurgências artísticas de outrora, é mister destacar ações como a do “Teatro do Oprimido” criado em Santo André nos anos 1960 (1) por Augusto Boal, com atores-operários “libertando de suas amarras” o proletariado dentro e fora das fábricas da região em plena ditadura militar, praticando o “teatro invisível”, e também a iniciativa ímpar que foi a Ópera Punk de Antônio Bivar/Antônio Pádua, cravando a ferro, fogo e botinadas sua marca na história do teatro regional.

Importante dizer ainda que ambas as experiências, cada uma em seu tempo e realidades particulares, usavam na maioria das vezes não-atores para debater arte, cultura, sexo, violência e política, subvertendo a “lógica máxima” corrente até hoje de que o palco é piso sacrossanto, reservado apenas a artistas sobre-humanos, “iluminados”.

A experiência da Ópera Punk, que pude acompanhar de forma mais próxima, tinha um signo e um símbolo titânico, caótico, com um poder de fogo contestatório abastecido com cargas pesadas de hormônios em ebulição, uma vez que foi montada por jovens da região no final dos anos 1990, todos filhos de operários desiludidos com o sistema. Eram punks do subúrbio interpretando a si mesmos numa autofagia cênica, um verdadeiro “horrorshow” para os incautos espectadores da ocasião.

As Revoluções esmagadas

Apesar de toda a enorme importância dessas iniciativas para a história do teatro político no ABC, tais montagens mantinham uma linearidade narrativa que não encontra herdeiros nas manifestações artísticas agora promovidas pelo Núcleo Zona Autônoma, e a peça Trotsky é a prova disso.

Partindo da constatação óbvia de que vivemos em uma sociedade absolutamente controlada, uma zona autônoma temporária (TAZ - Temporary Autonomous Zone) (2) prega a criação de motins/levantes, ilhas de liberdade, momentos-catarse sem dono, sem regras e sem lei, organizados de forma não hierarquizada, imediatista, que se materializam e se dissolvem antes de caírem nas garras totalitaristas do status quo.

Desta forma Trotsky e as outras montagens do “NZA” (Lenin e Rosa Luxemburgo) foram concebidas, buscando mais que uma apoteose cênica, uma postura e um posicionamento crítico e livre perante a vida, empregando muita energia e fúria para contar suas histórias de levantes-focos-insurgências-motins, de revoluções esmagadas, de tudo aquilo que poderia ter sido, mas não foi.

No palco que recebe o “NZA”, televisores compõem cenário modesto que apresenta a história de uma investigação policial sobre a morte de Trotsky, não o conhecido revolucionário russo, mas um ator de seriado norte-americano que supostamente se enforcou.

A partir daí, uma sucessão de cenas, que são enumeradas pelos atores Talita Talissa e Márcio Castro, vão se desdobrando num tom crescente de questionamentos, tornando a narrativa um julgamento espetáculo, tudo muito parecido com nossa realidade midiática, elegendo vilões e heróis momentâneos, manipulando para agradar a mão invisível do “mercado”, que está em todo lugar.

Os dilemas dos personagens são apresentados babelicamente, revelando todo um fosso de conflitos familiares mal resolvidos. Mãe de Trotsky, pai de Trotsky e irmão de Trotsky expõem sem reservas todas as suas nuances, algumas beligerantes, trazendo à superfície vários paradigmas de uma vida ora entregue ao capitalismo (vinculada a uma ONG salvadora que existe mais para financiar seus criadores do que proporcionar vigor a uma pseudocausa), ora devotada a uma vida puramente ideológica, antissistema, que prefere ver o filho morto a corrompido pelo capital...

Trotsky tem grandes momentos, levando o terrorismo poético a que se propõe às últimas consequências, as vezes é arte, as vezes é comício, é caos ao apresentar múltiplos universos de conteúdo e conceito. Trotsky é um recrutamento. Trotsky é um enclave autonomista. Como dizem na peça, “Arte é martelo”...

Por Jairo Costa
Jornalista, ecritor e editor da Revista MORTAL.

(1) “Os primeiros embriões estão em Santo André, uma cidade simbólica para o TO”, afirma Boal. O teatrólogo esteve em Santo André no início dos anos 1960 a fim de organizar um seminário de dramaturgia no Sindicato dos Metalúrgicos. O projeto resultou em peças escritas pelos operários. Em uma delas, A Greve, a discussão foi literalmente para o palco quando um espectador se viu retratado no personagem que furou a greve e interrompeu a encenação para se defender. Boal narra a história completa no livro de memórias Hamlet e o Filho do Padeiro. “O teatro é uma característica do ser humano. Todo homem tem dentro de si o ator e o espectador”, diz.

(2) Cunhado em 1990 pelo poeta, anarcoimediatista e estudioso do Sufismo Hakim Bey, o termo Zona Autônoma Temporária (ZAT) busca preservar a criatividade, a energia e o entusiasmo de levantes autônomos, sem replicar a traição e violência inevitáveis que têm sido a reação à maioria das revoluções ao longo da História. A resposta, de acordo com Bey, está na recusa em esperar por um momento revolucionário e, em vez disso, criar espaços de liberdade no presente imediato ao mesmo tempo em que se evita o confronto direto com o Estado.