Sesc SP

Matérias do mês

Postado em

Depoimento: Jorge Dubatti e João Miguel: O Bispo na Escola de Espectadores

Jorge Dubatti e João Miguel.<br>Foto: Matheus José Maria
Jorge Dubatti e João Miguel.
Foto: Matheus José Maria

“O espectador vem a Escola de Espectadores não para ouvir um crítico autoritário, mas para criar um vínculo com o teatro, aí está o segredo: ele quer organizar essa relação.”
(Jorge Dubatti)

 
No dia 08 de abril de 2017 aconteceu o lançamento do livro “O Teatro dos Mortos: introdução a uma filosofia do teatro”, publicado pelas Edições Sesc São Paulo. Eu estava presente, já que há alguns anos tenho acompanhado de perto as passagens do professor Jorge pelo Brasil, especialmente pela cidade de São Paulo. Para os pesquisadores do campo da recepção teatral, assim como eu, é de extrema relevância ter acesso a um material teórico dessa envergadura, em língua portuguesa.

Vale dizer que me aproximei das propostas do professor Jorge alguns anos antes, em 2011, quando em uma rápida passagem pela cidade de Buenos Aires, soube pela primeira vez da existência da Escola de Espectadores (EEBA), durante um café com o professor Flávio Desgranges, um dos mais respeitáveis pesquisadores da área de formação de espectadores no Brasil. Por ele veio a notícia: “Existe uma escola em Buenos Aires onde se aprende a ver teatro. ” A partir dali iniciei um caminho particular de investigação sobre a referida Escola.

Mas, foi somente em 2013, que tive a chance de conhecer o professor Jorge Dubatti, na I Bienal Internacional de Teatro da USP, concebida por Celso Frateschi, ocasião em que proferiu uma conferência pública. Na II Bienal, quando eu atuei como uma das responsáveis pela curadoria de ações pedagógicas deste evento, sob a coordenação geral de Ferdinando Martins, tivemos a oportunidade de tê-lo novamente em solo paulistano, coordenando algumas ‘escolas de espectadores’.

Ressalto que na ocasião do lançamento do livro, os que estiveram presentes foram agraciados com um diálogo efusivo e apaixonante entre o pesquisador argentino Jorge Dubatti e João Miguel, ator-criador do espetáculo “O Bispo”. Esse diálogo integrou uma demonstração sintética do funcionamento da EEBA, a partir de um dos procedimentos empregados por Jorge – a entrevista com os artistas. A curadoria do Sesc teve o cuidado de criar um evento integrado, onde os presentes tiveram a chance não só de ouvir sobre os conceitos contidos no livro, a partir da mediação da jornalista Beth Néspoli, mas de compreender melhor os procedimentos de trabalho desenvolvidos na Escola de Espectadores, já que prática e teoria encontram-se em completa conexão na trajetória de Dubatti.

Figuravam entre os espectadores daquele dia, nomes relevantes do cenário teatral, entre eles Cecília Boal e Celso Frateschi, entusiastas de formas de trabalho que levam em consideração a aproximação entre espectadores e artistas.

Antes de me deter em aspectos específicos do diálogo entre Jorge e João, outro momento digno de nota: no início do mesmo dia, acompanhei o professor até a exposição “Meus caros amigos – cartas do exílio” no Sesc Vila Mariana, que reúne parte da correspondência de Augusto Boal (1931-2009), criador do Teatro do Oprimido, durante os anos de seu exílio político, de 1971 a 1986, que estava acontecendo no Sesc Vila Mariana. Das experiências que vivemos, as mais significativas são, de forma geral, do campo das trivialidades. Não foi diferente nesse dia. Entre um sanduíche e um refrigerante, em lugar de um almoço bem servido, nos saciamos de fotos, cartas e outras referências da passagem de Augusto Boal por Buenos Aires. Dubatti compartilhava comigo, assim como uma criança encantada com um brinquedo novo, cada rosto que reconhecia da história do teatro argentino; rostos que estavam estampados ali, nas paredes do Sesc. Nem o trânsito e os horários apertados foram capazes de retirá-lo do seu estado de êxtase, após ver a exposição. Vivido esse momento em sua máxima intensidade, retornamos então para o Sesc Bom Retiro.

Aqui cabe lembrar que a EEBA já conta com 13 anos de história. Primeiro no Teatro Liberarte e desde 2003 no Centro Cultural de la Cooperación Floreal Gorini. Hoje a Escola é um reconhecido centro de produção de pensamento crítico e de formação. Tanto é que tem sido visitada por diversos especialistas do mundo todo. Na EEBA, segundo palavras do professor Dubatti, existe uma atenção especial na apreciação mediada do fenômeno artístico. Escolhem-se espetáculos, escolhem-se mediadores e abre-se a Escola para toda e qualquer pessoa que queira participar dessa experiência de convívio.

É antes de qualquer coisa, um espaço destinado ao estudo, análise e discussão de espetáculos teatrais em cartaz na cidade de Buenos Aires, de forma ininterrupta, de março a dezembro, tendo em seu quadro de participantes, mais ou menos, trezentas pessoas/ano. Existe também uma multiplicidade de formatos estéticos que são apreciados pelos participantes. Para ele, interessa muito o pensamento gerado pelo acontecimento teatral.

Assim, na EEBA existe uma proposta de compartilhar com os participantes vetores de análise para a leitura de espetáculos, numa clara democratização dos saberes teatrais, para além dos muros criados por especialistas. É um formato que, ao que tudo indica, amplia e enriquece o horizonte cultural dos participantes. Trata-se de estar em um lugar em estado de assembleia, de criticidade ativa, de construção de sentidos coletivos, onde seja possível que a construção de discursos simbólicos/estéticos deflagre um novo olhar sobre as próprias subjetividades.

E foi isso que aconteceu nos dias 07 e 08 de abril no Sesc Bom Retiro: uma pequena assembleia e, consequentemente a abertura de uma pequena fissura espaço-temporal, que partiu de uma ida ao teatro para vermos o espetáculo “O Bispo”. Essa encenação teve o seu pontapé inicial em 1996, e apresentou ao mundo esse homem que já foi comparado a Duchamp: Arthur Bispo do Rosário, um interno de um hospital psiquiátrico. Do campo novamente das experiências que são singulares e irreprodutíveis, eu já havia visto o espetáculo em sua primeira fase, ou seja, mais de dez antes, e naquela sexta, pude vê-lo novamente. Mas já era outro. Outro Bispo, outro Miguel, outro teatro, como deve ser.  As experiências não se acumulam como moedas ou se sucedem num tempo linear, elas são o que são, no seu tempo e no seu lugar.

No dia seguinte ao da ida ao teatro, contamos com a generosidade de João Miguel, que se deslocou de outro compromisso para estar conosco, para que Jorge Dubatti pudesse estabelecer um campo de mediação coletiva a partir da obra. Com perguntas e observações do pesquisador, criou-se um campo frutífero e absolutamente prazeroso de debate. João Miguel foi claramente ‘pegando gosto’ por uma conversa que se desenhava no espaço do teatro, tecida com histórias, memórias, escolhas. Era pelo teatro que falávamos, era no teatro que estávamos. Foi de uma beleza sem par, de uma delicadeza própria dos sujeitos que não se omitem em sua doçura e humanidade. Foi um bonito encontro! Que bom que eu estava lá!

Durante a conversa, os temas foram surgindo e as impressões foram sendo pontuadas: uma encenação com multiplicação de sentidos e a liminaridade como vórtice. Na cena os limites deflagrados entre o real e a ficção, entre a vida de Miguel e a vida de Bispo, entre a loucura e o sagrado, entre a loucura e a arte. “Que diferenças há entre loucura e arte, afinal?”.

No diálogo emergiu a potência subversiva do artístico: presente no teatro, presente na obra de Bispo. Noutro momento foram explicitados os aspectos ritualísticos enfatizados em cena, que imediatamente foram reafirmados pelo artista, como intrínsecos ao processo de pesquisa: tambores, fogo, arquétipos, incenso, ‘dança xamânica’. Durante o mesmo processo de decodificação da obra, surgiram os hieróglifos como metáfora, percebidos nos objetos da cena.

Os temas foram sendo bordados em frente ao público, na mesma medida em que termos como ‘assemblage’ e os limites entre a realidade e a ficção iam sendo desenhados, definidos, reafirmados. A marginalidade como tema, como disparador e como realidade cênica vinha à tona. O sagrado se apresentava, não só na pesquisa desenvolvida, presentificada enquanto espetáculo, mas no próprio encontro entre aqueles dois homens, naquele dia e naquele lugar, no Sesc Bom Retiro.

Ao mesmo tempo que a encenação propunha uma suspensão de tempo, a assembleia que se estabelecia ali, era também um ritual para se discutir outro ritual: o do teatro. A memória ancestral, do homem primitivo, apresentada pelo fogo, pelo círculo e pelo batuque, virava discurso organizado, experiência consolidada.

Os hieróglifos construídos nas imagens simbólicas nos transportavam para novas relações de encontro: o tempo em suspensão e uma ancestralidade invocada em cada um de nós, como povo brasileiro, que tem em comum, ocupar um espaço sempre à margem.

E por fim, estávamos todos ali, unidos por algum tipo de espiritualidade, cumprindo um ‘ritual de passagem coletiva’, e não conseguiríamos mais sair do espaço ilesos, depois da peça, depois do debate. Tratava-se da ressignificação do próprio ritual do teatro. E a arte cumpriu o seu papel – criando um lugar de conexão com a sociedade, um espaço onde foi possível a desautomatização do cotidiano. E encerrou-se assim o encontro entre um filósofo, perguntador por natureza e ofício e um artista intelectual, compartilhando a sua práxis. Criou-se essa possibilidade de comunicação entre os homens, independente dos lugares sociais ocupados.

_______

Cláudia Alves Fabiano
Doutoranda em Pedagogia do Teatro pelo Departamento de Artes Cênicas da USP. Investiga a Escola de Espectadores de Buenos Aires. É orientadora de arte dramática do TUSP na cidade de São Carlos.