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Sabor e reflexão trabalham juntos em “Melancia“
Quatro atores formados pela EAD (Escola de Arte Dramática da USP) compõem a Cia. Monstro. Para seu primeiro espetáculo, a autoral “Melancia”, a companhia passou por um intenso trabalho de corpo na busca por uma cena ativa, visceral.
A pornografia está presente na temática. O espectador se transforma em um voyer do ato teatral. A lógica do consumo provoca reações insaciáveis. A fruta é objeto desejo. A crise obriga a sair do óbvio.
“Melancia” mergulha no líquido, no insaciável e faz refletir sobre nossa relação com a sociedade e com nós mesmos em meio a um deserto de solidão que assombra essa era digital em que vivemos.
Mas por que melancia e não pepino, melão, morango ou carambola?
Victor Mendes, ator e diretor do espetáculo – em cartaz de 21 de abril a 14 de maio no Sesc Santo André –, explica o motivo em entrevista à EOnline, além de falar sobre a essência das relações humanas.
EOnline: O Espetáculo é autoral e o primeiro da Cia. Como foi o processo até chegar ao que a peça é hoje? Como foi a preparação do grupo?
Victor Mendes: A ideia desse espetáculo eu tive ainda em 2009 quando fazia uma oficina com o Grupo XIX de teatro e assisti a um pequeno trecho do filme japonês “O Sabor da Melancia", de Tsai Ming Liang. Depois disso entrei na EAD (Escola de Arte Dramática da USP) e conheci os meus parceiros. Quatro anos depois, quando chegamos à formação da escola, optamos por fazer um projeto independente em que fossemos atores e diretores, sob a orientação da Cristiane Paoli Quito. Ainda nesta primeira fase, convidamos nossos amigos brilhantes Carolina Bianchi e Vinicius Calderoni para escrever cenas que trazíamos como provocação. Tivemos nove meses de pesquisa e levantamos nove cenas.
Quando nos formamos na EAD voltamos à sala de ensaio, mas desta vez eu assumi a direção e somente nós quatro em cena. Foram mais oito meses neste processo. Escrevemos algumas cenas, cortamos outras, e chegamos ao que hoje é o espetáculo "Melancia".
Muito trabalho de corpo, de busca por uma cena ativa, visceral. Acredito que o espetáculo tem esta característica.
EOnline: Existem outros alimentos ricos em água como o pepino, o melão, o morango e a carambola. Por que a escolha da Melancia?
Victor Mendes: Pois é! A melancia surge por influência do filme, mas depois, investigando e pesquisando sobre a fruta, descobrimos que a fruta surgiu no meio de um deserto na África. Agora, como pode uma fruta que é 90% água surgir no meio do deserto? Isso parece um erro, um acidente, alguma coisa fora do comum, e isso nos interessa bastante, um desvio de rota, uma mudança de caminho.
EOnline: “Melancia” fala sobre como as relações do homem com as pessoas ou objetos são descartáveis. Como é retratar essa sociedade “líquida”? Qual o impacto disso no público que assiste?
Victor Mendes: Exatamente! Melancia discute essas questões e retratar isso na nossa obra é muito prazeroso. É algo que realmente está acontecendo no nosso dia a dia e achamos importante jogar o foco nisso. Estamos ficando sem laços, sem criar relações, o que é um pouco perigoso: não nos conhecemos de verdade. Mostramos nossa vida para as pessoas através de uma imagem construída nas redes sociais.
O público se reconhece nesses caminhos, nessa liquidez, e vê a situação como espectador tendo a oportunidade de refletir a partir do olhar de fora. A plateia se diverte bastante com a peça e costuma sair reflexivo sobre todos os temas levantados por “Melancia”.
EOnline: A pornografia tornou-se a última opção dos personagens para superar a crise. Na visão de vocês, por que a pornografia atrai tanto, ao mesmo tempo em que ainda é um tabu na sociedade? Caso a história saísse dos palcos e acontecesse na vida real, vocês como atores, fariam o mesmo que seus personagens? Por quê?
Victor Mendes: Na verdade a pornografia é uma arte que nos atrai muito, não somente a nós atores desta peça, mas a nós sociedade em geral. Acredito que a pornografia é de uma liberdade muito grande, porém não tem a ver com envolvimento, com amor, com relação. E isso é um ótimo ponto pra discutir a sociedade líquida. Sabemos do julgamento das pessoas e do falso moralismo que está impregnado em todas as camadas da sociedade e é por isso que decidimos investigar essa linguagem pornográfica. A pornografia, na nossa visão dentro da peça não é somente falar de sexo ou sugerir imagens sexuais, ela está na forma e na rapidez com o que as cenas se constroem e desconstroem.
Eu respeito muito a pornografia e acho que ela tem uma força imensa. Particularmente eu não me coloco dentro da pornografia como conhecemos, mas já ando querendo me aproximar dela. “Melancia” foi esse mergulho louco, mas acho que talvez por não estar vivendo o que essa sociedade "fictícia" que a peça apresenta, consigo me manter somente próximo a ela e não dentro dela de verdade... Mas de qualquer forma, por que não?
EOnline: A ligação entre a pornografia e a satisfação imediata das necessidades traz à tona a discussão de que tudo que há mais profundidade se perde. Na opinião de vocês, por que esses laços mais profundos perderam o valor? Como vocês acham possível resgatar isso?
Victor Mendes: As redes sociais têm grande importância nisso. Somos uma geração em transformação, aprendendo a lidar com isso, mas veja bem, se você pode se "transformar" em uma pessoa sem problemas, que viaja pra lugares legais, que está sempre sorrindo como em comerciais de margarina, por que é que você vai mostrar suas fragilidades? Então é mais cômodo se envolver até a pagina 2 e depois não mais. Partir pra outra. Isso acontece nas relações amorosas, nas relações de amizade e familiares. Quem são os amigos que você faz questão de encontrar pessoalmente no aniversário ou que você ao menos liga pelo telefone? Essa conta referente a quantidade de amigos do Facebook, qual é? Acho que falar sobre isso já é um “chamar a atenção pra essa valorização”. O teatro como experiência artística é uma revolução neste contexto, pois é presencial, não tem como acontecer o teatro sem a relação interprete/plateia. Isso não tem como ser superficial.
EOnline: Vocês utilizam de recursos audiovisuais e de dança contemporânea durante a encenação. Qual a importância desses recursos para a montagem do espetáculo?
Victor Mendes: Os recursos audiovisuais estão na peça porque achamos que assim é a forma que as pessoas usam pra selecionar o que interessa de tudo aquilo que acumulam. Tem a ver com o momento presente do Instagram, Facebook, e a relação virtual em geral. A dança entra exatamente na contramão, dos corpos presentes em exercício máximo, ver alguém transpirando e respirando na sua frente, saltar no colo do outro, dançar junto, é uma relação íntima e de confiança.
EOnline: Podemos falar que o espetáculo “é muito Black Mirror”, pela concepção de deixar o público pensativo, meio desconfiado de uma distopia?
Victor Mendes: Acho que sim. Acho que podemos usar este conceito pelas discussões interessantes que estão em “Black Mirror”, mas vale lembrar que “Melancia” não tem essa influência porque concebemos ou estávamos concebendo o espetáculo antes da série vir à tona.