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Sobre a importância de comer
Conversamos com a chef Eleonora Soledade, também pesquisadora das representações das imagens do comer pela PUC SP, sobre alimentação e pais e filhos na cozinha - tema sobre o qual ministrará oficina no Sesc Belenzinho, neste sábado, 25/outubro
Você sabe que comer não é só colocar a comida na boca, mastigar, engolir e voltar ao que estava fazendo antes do momento da alimentação, certo? Existem várias coisas envoltas no ato de comer: tradições, despertar de sentidos e também como você se comporta com o seu ambiente.
Na conversa com Eleonora, obtivemos alguns interessantes pontos de vista sobre como nos alimentamos hoje em dia, quais as razões de fazermos desse jeito e, principalmente, o que isso impacta no nosso cotidiano e na nossa fome. Vale a pena a leitura para pensar!
Confira os principais trechos da conversa:
EOnline: "A fome não é e não pode ser só de substância". Esta frase está no seu blog e pode dar margem à diversas interpretações, entre elas, que o que comemos, hoje em dia, pode ser considerado um ato político. Você acredita nesse ponto de vista? Você poderia falar um pouco sobre a sua pesquisa? Quais são as representações das imagens do comer?
Eleonora Soledade: Sim, acredito que o comer pode ser um ato político. A política se relaciona com as questões do poder, e o comer é uma escolha, e direcionar essa escolha é uma questão de poder. Mas quando falo das representações acredito no simbólico, não comemos proteínas, carboidratos, mas aquilo que eles representam. Comemos este simbólico contido no alimento e representado nas imagens construídas deste alimento. Comemos usando os cinco sentidos, comemos de forma estética, sinestésica, e assim acessamos o imaginário, o mágico. Nos alimentamos da alegria de uma família feliz retratada nos comerciais, comemos as qualidades magicamente atribuídas aos produtos e creio que é a imagem, construída e elaborada que transporta silenciosamente esses significados: nossa fome é do simbólico.
EOnline: Ainda na questão do "hoje em dia": vivemos numa época em cujo o tempo para a contemplação é cada vez mais escasso e preenchido com necessidades de registro e comunicação. Assim, cozinha-se pouco, e temos uma relação totalmente distante e mediada com o próprio alimento. Quais os malefícios deste comportamento? Há espaço para outro tipo de relação com a alimentação?
E.S.: Acredito que sim, que podemos construir outro tipo de relação com o alimento. Acredito que essa relação pensada, simbólica, é a relação a ser cultivada. Como a mandioca, pois meus ancestrais sobreviveram por conta dela, isto é rico e me construo, resignificando minha história e a convivência com o outro. Esse tempo de transformação e preparo do alimento é precioso e não deve ser trocado pelo abrir de uma embalagem. O comer se relaciona com a cultura, com as heranças, a identidade, os hábitos e o cotidiano - isso me define, me dá sentido. O comer é bem mais amplo e deve ser pensado: não deve ser apenas uma reação autômata aos apelos das indústrias e do marketing no "fluxo frenético" das metrópolis.
EOnline: O seu blog aponta que "é possível ser outras coisas além de mamãe e ser mamãe além de outras coisas". Na sua experiência com pais e crianças, as preocupações dos pais com a alimentação dos filhos se traduz nos hábitos deles? Ou é comum encontrar incoerências entre hábito e discurso?
E. S.: Infelizmente, nem sempre nossa preocupação de pais se traduz em hábitos. Muitas vezes nosso hábitos são respostas autômatas aos apelos da indúístria e do marketing. Apenas reagimos e não refletimos a respeito das nossas escolhas. É um esforço cotidiano se posicionar de forma atuante dentro da jornada extenuante que levamos. Devemos honrar nossas heranças, nossas ideologias, nossa cultura no comer cotidiano e, mais que isso, nossa relação comunal: o comer juntos e o preparar a comida nos define e tem um significado poderoso, não podemos abrir mão disso para esquentar a comida que compramos pronta, comer separados em frente ao computador ou TV - isso simplesmente não mata nossa fome, lembre-se a fome não é só da substância!
EOnline: Qual o maior interesse dos pequenos quando o tema é cozinhar e comer? É difícil fazê-los experimentarem coisas novas? Qual abordagem os pais podem tentar com o intuito de fazer as crianças desenvolverem o gosto por alimentos não muito "atrativos" para crianças, como verduras e legumes?
E.S.: As crianças entendem plenamente essa relação subjetiva, sinestésica com o comer. Elas funcionam assim, por isso comem as embalagens coloridas, os personagens, os comerciais: se alimentam do simbolico. Só nos comunicamos com elas quando acessamos essa linguagem. Pense: a coitada da laranja tem que concorrer com lindas embalagens brilhantes. É claro que ela vai perder, a não ser que usemos as mesmas ferramentas para comunicar as qualidades dessa laranja. O que tem mais aroma a laranja fresca? Mais sabor? Para isso devemos experimentar, vivenciar de forma lúdica e estética, no seu sentido clássico, usando os cinco sentidos. Assim a briga com a embalagem fica justa e podemos mostrar a diversidade de cores, aromas e sabores que as comidas frescas possuem, construir contrastes de texturas e formas, construir um belo entorno, um momento agradável e, assim, matar a nossa verdadeira fome além dos elementos químicos.
EOnline: Quais são os hábitos alimentares que você julga mais saudáveis no nosso tempo? O que todo mundo deveria ter na geladeira ou comprar na feira?
E. S.: O melhor dos hábitos alimentares é dar valor ao momento do comer. Parar e usufruir a experiência, estar presente integralmente e usufruir prazerosamente do convívio, se permitir a pausa. No que diz respeito a substância, acredito que nossa geladeira é onde devemos manifestar nossa cultura.
Devemos consumir o que a terra nos oferece aqui, na minha cidade e no meu momento, consumo local e sazonalidade. No silêncio das prateleiras da geladeira, consumir integralmente, e com respeito a terra, o que compramos, sem desperdícios. Ingredientes são uma oportunidade de manifestar nossos modos de fazer, nossos aprendizados ancestrais, nossas heranças culturais e, mais que tudo, uma oportunidade de convívio: transformar o alimento, isto é, cozinhar, é algo a ser feito coletivamente, como um belo ritual - aqui reafirmamos nossa essência. É claro que nem sempre conseguimos fazer isso cotidianamente, e tudo bem, sem radicalismos, mas o convívio não pode ser esquecido ou tido como algo sem importância.
Devemos ter na geladeira ingredientes a ser preparados e que vieram de perto, colhidos na época que estão abundantes e esse momento de convívio deve ser dividido e usufruído. Pois foi o fogo, o coletivo nos fez o que somos: humanos, e isso, não pode ser esquecido. Deve ser reverenciado, sempre que possível, em nossa mesa de jantar.