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As músicas de protestos ou levantes
Como toda linguagem artística, a música também cumpre o seu papel político. Em diversas ocasiões a canção se transformou em motor de transformação na boca das massas. Palavras de ordem, refrãos poderosos ajudaram ao longo de décadas a organizar o povo em torno de ideais comuns. Prova disso é que as músicas de protestos compõem a temática da exposição Levantes, em cartaz no Sesc Pinheiros. A mostra registra as emoções coletivas de cunho político e, as diferentes formas de representação dos levantes, atos populares e políticos, engajados nas transformações sociais, nas revoltas e/ou revoluções.
Canções de levantes populares, não necessariamente são refrãos certeiros na “boca do povo”, quando estão na rua em grande número em um ato político, mas marcam uma época de insatisfação popular, principalmente relacionada aos governos vigentes de um país.
No Brasil, o período da Ditadura Militar que durou de 1964 a 1985, é indissociável à produção mais crítica da Música Popular Brasileira. Pelo mundo, são inúmeros os capítulos de levantes populares que trouxeram à tona as canções de protesto.
Em 2013, ano marcado por grandes levantes populares no Brasil, o jornal paulista Folha de S. Paulo anunciou em seu site, de forma superficial, uma seleção de músicas relacionadas aos protestos daquele ano. A matéria com o título “Manifestações já tem seu repertório de canções de protestos”, sugere o esgotamento da canção ícone dos protestos contra a ditadura militar dos anos 1960 e 1970, do artista Geraldo Vandré, “Caminhando (Pra Não Dizer que Não Falei das Flores)”.
O texto, não assinado, propõe uma defesa das novas canções surgidas durante as Jornadas de Junho, apontando para uma renovação do repertório. Outro ponto abordado pelo jornal, é que essas músicas foram lançadas exclusivamente pela internet “onde tudo começou” referindo-se ao estopim digital das grandes manifestações.
A música de protesto tem uma fórmula clara: refrãos fortes e questionamentos de oposição ao status quo social, independentemente de ideologia. Outra característica importante para o nascimento para uma música de levante é a criatividade dos autores, a habilidade em escrever letras ácidas, com a rima necessária para se deixar um recado ou um apelo popular. Mais do que tudo isso, uma música só se transforma em canção de protesto quando devidamente apropriada, em seu tempo, pelas pessoas.
Mesmo todas as linguagens artísticas tendo o poder de transmitir a insatisfação social, a música é notadamente, usada a centenas de anos, como instrumento de articulação de massas, propondo outras visões e questionando valores impostos. Desse modo, a música movimenta a sociedade e, por sua vez, a sociedade movimenta a música.
Nesse espectro, o Sesc São Paulo traz, em seu perfil no Spotify, uma seleção de faixas brasileiras e estrangeiras, que ao longo do tempo marcaram levantes e movimentos populares; a fim de compreender o contexto histórico de suas execuções e o papel do artista, enquanto agente influente para a opinião pública.
Aberta ao público até o dia 28 de janeiro de 2018, Levantes é composta por atividades paralelas e formativas. Tem curadoria do filósofo e historiador de arte Georges Didi-Huberman, intelectual francês contemporâneo, autor de dezenas de livros, cujas reflexões abrangem desde a filosofia da imagem à história da arte, passando pelo cinema e pela literatura.
Confira um pouco mais sobre as músicas que escolhemos para acompanhar sua visita a exposição:
1 - Opinião – Zé Keti
Composta em 1964, trata-se de um samba que se tornou emblemático pelo desdobramento com outros artistas e outras linguagens. Opinião virou nome de show, de grupo de teatro, de espetáculo teatral – em que o próprio sambista atua - e também deu título ao segundo álbum da cantora Nara Leão. Na letra, Zé Keti retrata não só a indignação, como também o conformismo da sociedade diante da repressão.
2 - Cálice - Chico Buarque de Holanda e Milton Nascimento
Cálice, sonoramente semelhante à “cale-se”, questiona a censura do regime militar. O verso “Pai, afasta de mim esse cálice”, repetido insistentemente, faz referência às dificuldades em lidar com a censura. A canção não pôde ser lançada no ano de sua composição, 1973, vindo a público apenas em 1978. O nome de Chico ganhou notoriedade com o exército e o público, por sua habilidade em disfarçar letras críticas ao governo. O músico e letrista, durante algum tempo, passou a assinar canções como Julinho Adelaide, um nome fictício criado pelo mesmo.
3 - Apesar de você - Chico Buarque de Holanda
Outro ícone popular nos assobios do povo, a canção está presente no mesmo disco que música anterior. A música, quando criada, foi logo censurada, sendo relançada anos mais tarde no disco homônimo de Chico Buarque de Holanda.
4 - Caminhando (Pra não dizer que não falei das flores)- Geraldo Vandré
A canção nacional de protesto mais popular. Com um refrão marcante, foi finalista do III Festival Internacional da Canção em 1968, quatro anos após o golpe militar. Geraldo Vandré foi censurado e perseguido, sendo obrigado a exilar-se por pelo menos sete anos. O governo totalitarista da época afirmava que a canção de Vandré era subversiva e instigava a luta armada do povo contra o Estado.
5 - Alegria, Alegria - Caetano Veloso
Caetano Veloso é uma das figuras de maior importância da música brasileira. Em seu primeiro disco solo de 1968 gravou Alegria, Alegria, que trata do incômodo vivido com a Ditadura Militar, então vigente há quatro anos. A letra trata de elementos do cotidiano sob a perversidade ideológica e totalitarista do governo.
6 - Que as crianças cantem livres - Taiguara
Taiguara teve 68 canções proibidas pelo regime militar. A perseguição resultou em seu exílio, em Londres. Que as crianças cantem livres, do álbum Teu sonho não acabou, de 1973, exprime o desejo melancólico e exaustivo de liberdade. A composição é mais uma de suas censuradas, lançada apenas anos mais tarde, durante o período de abertura política.
7 - Mosca na Sopa - Raul Seixas
A música composta e lançada em 1973 pelo cantor e compositor baiano Raul Seixas caiu no gosto popular devido ao refrão claro e repetitivo. É um recado metafórico ao governo militar, em que o “povo” é a “mosca” e quer incomodar, não dar chance de paz ao regime instaurado e sufocante.
8 – Coração de Estudante – Milton Nascimento
Composta em 1968, a canção de Milton Nascimento e Wagner Tiso foi inspirada na morte do estudante Edson Luís, uma das primeiras vítimas fatais da ditadura militar. Inicialmente integrava a trilha do documentário Jango, do mesmo ano, ganhou letra e 15 anos depois foi uma das principais trilhas sonoras das Diretas Já.
9 - Polícia - Titãs
Faixa do disco cabeça Dinossauro (1983), lançado no final da Ditadura Militar, em que a censura já havia se abrandado e novos artistas, de rock, inclusive, passaram a compor e resgatar letras de protesto. O Titãs era um grupo recém formado, assim como grande parte das bandas de rock nacional da época, que mantinham tom crítico ao sistema político brasileiro.
10 - Diário de um Detento – Racionais MC’s
O rap é um gênero de protesto desde seu nascimento, nos subúrbios de Nova Iorque, EUA, onde foi criado. Aqui no Brasil, ganhou relevância, principalmente a partir da aparição de seu grupo mais importante, os Racionais MC’s. Em 1998, seis anos após o massacre do Carandiru, no qual 111 detentos foram mortos por policiais do Estado de São Paulo, o grupo lançou Diário de um Detento, que retrata uma história pontual que se passa no extinto presídio. O clipe da música chegou à MTV e ganhou destaque, conseguindo, de alguma forma, mostrar ao Brasil a realidade decadente do sistema prisional no país.
11 - Brado retumbante - MV Bill
O disco Vitória Pra Quem Acordou Agora e Vida Longa Pra Quem Nunca Dormiu, é de 2014 e faz alusão direta aos grandes levantes populares de 2013. A faixa que abre o disco expõe detalhes sobre o que acontecia nas manifestações daquele ano que movimentaram o Brasil todo.
12 – Ay Carmela – Rolando Alarcon
Durante a Guerra Civil Espanhola, as diversas facções rivais alimentaram o imaginário de combatentes e opinião pública com diversas canções. Uma das mais famosas é Ay Carmela, de autoria e ano de composição desconhecidos, foi uma das melodias mais entoadas pelos republicanos que lutavam contra as forças de Francisco Franco, futuro ditador da Espanha.
13 - Bella Ciao - Autor desconhecido, aqui interpretada por Goran Bregovic
Hino popularmente conhecido por ter cunho comunista e aludir ao fim do fascismo na Itália. Uma curiosidade: sua autoria é desconhecida, porém, muitos músicos e cantores europeus a adotam em seus discos e shows, tendo sido gravada centenas de vezes. Há relatos de que a campanha de um dos governos vencedores da Grécia (Syriza) tenha adotado a canção como marca de sua vitória em 2015.
14 - La Muralla - Quilapayún
O grupo chileno Quilapayún era conhecido por ser politizado, com tendências à esquerda. A referida canção, gravada em 1969 originalmente, ganhou ainda mais popularidade logo após o presidente chileno Salvador Allende ter sofrido, junto com a população, um golpe de Estado, após o qual foi instalada uma ditadura que durou mais de 17 anos. A canção, baseada no poema do cubano Nicolás Guillén, foi regravada na Espanha em 1976 por Ana Belén y Víctor Manuel e, ficou conhecida como um canto de liberdade.
15 - The Revolution Will Not Be Televised - Gil Scott Heron
O recital, do disco Pieces of a Man, de 1971, não necessariamente conquistou levantes, mas de alguma forma, deixou clara a sua intenção de incitar e fortalecer o movimento pelos direitos civis dos negros, desde meados dos anos 1960, nos EUA. Gil Scott Heron é tido como um dos precursores do rap (abreviatura de rhythm and poetry, ritmo e poesia, em tradução literal), devido ao fato de misturar a poesia com música. Além de ser sido um ativista pelos movimentos dos direitos dos negros, era músico e escritor, tendo lançado cinco livros e mais de vinte discos.
16 - Grândola, Vila Morena - Zeca Afonso
José Afonso ou Zeca Afonso, como também é conhecido, foi um perseguido político na época da Ditadura Militar portuguesa (1933 - 1974), comandada por Antônio de Oliveira Salazar. A composição de canto à capela, coro e o som das marchas ao fundo, entoam uma canção até mesmo adotada pelos militares insurgentes que contribuíram na derrocada daquele regime.
17 - Power to the people - John Lennon
A canção compõe o seu disco solo de estreia (Plastic Ono Band, 1970), logo após os The Beatles encerrarem suas atividades. A letra faz uma clara incitação à revolução e ao reconhecimento das pessoas enquanto iguais perante o mundo. É quase um convite às ruas, com um refrão forte e marcante.
18 – Get up, Stand Up – The Wailers
Get Up, Stand Up foi escrita em 1973 por Bob Marley e Peter Tosh. A música apareceu pela primeira vez álbum Burnin', e imediatamente tornou-se um hit. Com refrão poderoso, que convida os ouvintes a levantar e resistir a toda e qualquer forma de opressão.
19 - Zombie – Fela Kuti
Composta em 1977, Zombie, é um afrobeat, ritmo proveniente da Nigéria. Nesta faixa, Fela Kuti questiona o governo corrupto e violento detentor do poder à época. O título é uma referência às ações brutais do exército contra sua própria população. A comunidade construída por Fela, a Kalakuta Republic, foi invadida e destruída, em resposta à popularidade da canção.
20 - People of the sun - Rage Against the Machine
Uma das bandas de protesto mais icônicas nos EUA, o Rage Against the Machine pode compor qualquer playlist relacionada ao assunto. People of the sun questiona a conquista do México pelos colonizadores espanhóis, e também relembra um ataque da Marinha americana contra jovens latino-americanos em Los Angeles, durante a Segunda Guerra Mundial, episódio conhecido como Zoot Suit Riots.
21 - Irhal – Ramy Essam (Por não ter sido gravada oficialmente, esta faixa ainda não está no Spotify)
Autêntica música de levantes, Irhal (“vá embora” em árabe), de 2011, foi o hino dos protestantes egípcios contra o governo ditatorial do então presidente Mubarak. A canção era entoada na praça central das manifestações (Tahrir) até que Mubarak entendeu o recado, viabilizando a sua própria destituição. A revolta popular, em conjunto com outros levantes políticos no norte africano, ganhou o nome de Primavera Árabe, que durou pouco mais de um ano.
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Além da prorgramação, o Sesc ainda lança, através das Edições Sesc, a publicação Levantes. A obra traz uma reflexão abrangente sobre a temática dos levantes, insurreições coletivas que buscam condições de vida mais igualitárias e desafiam formas de submissão a um poder absoluto. Saiba mais sobre ela aqui.
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Levantes no seu fone de ouvido ou caixinha de som: