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“Minha premissa é dar voz ao Bispo”
A pesquisa para a realização do espetáculo Bispo, em cartaz no Sesc Bom Retiro, já dura 20 anos. João Miguel ainda atuava como palhaço de circo quando descobriu, em 1995, a biografia do artista plástico sergipano Arthur Bispo do Rosário (1909-1989), que passou 50 anos encarcerado numa instituição psiquiátrica do Rio de Janeiro, onde produzia navios, mantos, estandartes e outros objetos a partir de materiais reaproveitados de seu próprio quarto e do lixo. O ator se embrenhou num processo de pesquisa aprofundado que culminou na primeira versão de Bispo, que estreou em Salvador em 2001 e projetou sua carreira no teatro, no cinema e na televisão.
“A própria pesquisa estabeleceu essa continuidade – havia muitas frentes a cogitar”, lembrou o ator, também responsável pela dramaturgia e pela direção do monólogo. Na primeira fase, entre 2001 e 2005, o espetáculo foi apresentado em teatros, centros culturais, igrejas e hospitais psiquiátricos, como a Colônia Juliano Moreira, onde Bispo passou grande parte da vida. “O processo não se esgotou, sempre desejei retomá-lo.” A interrupção, que durou nove anos, possibilitou uma carreira produtiva no palco e em diferentes plataformas audiovisuais (atualmente, o ator estrela a série 3%, da Netflix).
Nesta entrevista, concedida durante o aquecimento do ator no camarim do teatro, João Miguel garantiu que prossegue em pesquisa. Sua única certeza é a de que não se trata de uma peça sobre loucura.
Como apresentar Bispo em hospitais psiquiátricos transformou a montagem?
Adentrar no universo manicomial foi fundamental para entender o viés institucional da loucura. Por muitos anos, os manicômios era os lugares para onde a sociedade mandava aqueles que não se encaixavam. Eu levei de volta para esse lugar uma figura que conviveu com algumas daquelas pessoas, que experienciou o que elas vivem. A minha proposta era abraçar a lucidez dos internos, como abraço a de Bispo. O desafio era me manter presente, disponível para trocar, ver e ser visto. Esse contato me ajudou a perceber que eu não queria falar sobre loucura, mesmo dentro dela. Minha premissa era e é dar voz ao Bispo.
Apesar de retratar uma figura real, a obra não é necessariamente biográfica. Por quê?
O espetáculo é um diálogo com a lógica de criação do artista. Foram incorporadas memórias minhas, de família, do candomblé, de pescadores com quem convivi, pessoas que de algum modo se assemelhavam à figura de Bispo do Rosário. Não faço o artista como ele andava, como falava... É uma figura criada a partir do meu mergulho nesse universo e no ele despertou em mim.
O personagem tem uma coerência interna. Dentro do próprio universo, parece são. Bispo não era realmente louco?
Ele criou os próprios códigos e sobreviveu. Eu o vejo não como louco, mas como um artista que teve a coragem de registrar o seu inconsciente. Bordou o próprio delírio e se reinventou na sociedade que o excluiu. Bispo existiu. Isso me interessa muito: existir de verdade. Tenho Bispo do Rosário como o meu professor nessa disciplina. Não me interessa como foi catalogado. Ele foi aprisionado quando passou por um momento de crise. Mas quem não passa?
Com acha que a obra do artista sobreviveu a essas circunstâncias?
O trabalho seguiu por si, ainda que não fosse compreendido em sua época. Nos anos 1980, quando o sistema começava a se abrir, a ficha dele no hospital foi alterada. Antes, era classificado como “esquizofrênico paranoide com delírios místicos”, sem que houvesse qualquer referência ao seu ofício. No final da vida, foi descrito também como artesão. Como não tinha herdeiros, sua obra ficou para a instituição que o aprisionou e hoje pertence à Secretaria Municipal da Saúde do Rio de Janeiro.
Nem ele se via com um artista...
Bispo rompeu com a catalogação da loucura ao atuar como artista e com a da arte ao encarar o que fazia como um desígnio espiritual. Mesmo os materiais que usava eram finitos, perecíveis. Nunca foram pensados para galerias ou museus. Ele improvisava com o que tinha, transformava lixo em significado.
Na noite em que assisti ao espetáculo, Bispo aborda um espectador, que se recusa a responder. Como essa interação transforma a experiência a cada apresentação?
Cada dia é diferente. Isso se relaciona com a minha experiência prévia como palhaço, porque tenho de receber o que o espectador entrega. Quando Bispo vai para a plateia, o público entra em cena. Essa experiência de ver e ser visto auxilia o espectador a tirar as próprias conclusões sobre a suposta loucura de Bispo. Hoje, mais do que nunca, o público não o vê assim. O que as pessoas enxergam é um homem em um estado alterado, que pode ser muito bem ser um estado de criação.
Leandro Quintanilha, jornalista
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