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Para que o céu não caia <br>Foto: Sammi Landweer
Para que o céu não caia
Foto: Sammi Landweer

“Muito tempo depois de eu já ter deixado de existir, (minhas palavras) continuarão tão fortes como agora. São essas palavras que pedi para você fixar nesse papel, para dá-las aos brancos que quiserem conhecer seu desenho. Quem sabe assim eles finalmente darão ouvidos ao que dizem os habitantes da floresta, começarão a pensar com mais retidão a seu respeito”
Davi Kopenawa (in “A queda do céu - Palavras de um xamã yanomami”)


Sob calor intenso mesmo em horário adiantado da noite, assisti pela primeira vez, em outubro de 2016, à obra “Para que o céu não caia” durante a programação da Bienal Internacional de Dança “De Par em Par”, em Fortaleza (Ceará).

“Para que o céu não caia”, que é a mais recente criação da Lia Rodrigues Cia de Danças, estreou na Alemanha, por ocasião de uma programação especial intitulada Projeto Brasil. Depois disto, cumpriu temporada na Favela da Maré (Rio de Janeiro), no galpão que se tornou sua sede desde 2003, quando Lia Rodrigues decidiu transferir para lá o trabalho da companhia e fundar um Centro de Artes e a Escola Livre de Dança, aproximando sua produção em dança contemporânea de uma atuação social sólida e permanente.

Entre 2016 e 2017, “Para que o céu não caia” participou de algumas das mais importantes iniciativas de difusão de dança do mundo, incluindo o Festival de Outono, em Paris, vitrine para nomes consagrados no mundo das artes cênicas.

Durante esta turnê internacional da obra, encontrei-me com ela em uma noite quente de Fortaleza. Quase cento e cinquenta pessoas foram acomodadas no galpão do Sesc Iracema para assistir a uma das duas apresentações do espetáculo, após esperarem por mais de duas horas na fila de ingressos. Lia Rodrigues e sua companhia, cujos intérpretes são coautores da obra em questão, alcançaram tamanha (e justa) notoriedade que o público se entrega com devoção às suas criações. Em Fortaleza, como aqui em São Paulo, os ingressos se esgotaram em minutos e a espera pelo início do espetáculo não era sentida como um fardo, mas como parte de um ritual ao qual nos entregávamos coletivamente.

Àquela época, eu mesma sabia pouco sobre o livro que inspirara “Para que o céu não caia” e não me preocupei em entender por que nos sentávamos no chão ou o que faziam, escondidos nos cantos, pequenos sacos de pó de café.

O que Lia Rodrigues propõe a seus intérpretes e espectadores é sempre uma experiência radical e potente de encontro, a partir de criações que questionam também a própria ideia de dança. Fugindo dos clichês e das soluções fáceis, a peça não propõe qualquer interação artificial entre bailarinos e público; antes, nos convida a estarmos juntos no silêncio de corpos que compartilham odores, fluidos, espaços, tempos. Estamos diante de uma obra capaz da rara síntese entre estética e política, na qual se dança o que se quer dizer; em que o que é enunciado coincide com a coerência de quem enuncia.

“Para que o céu não caia” prescinde de palavras para encenar a história da companhia. Ou seria a história do Brasil? Ou o mito do início e do fim do mundo? Fato é que, além de dedicada ao artista visual Tunga, falecido em junho de 2016 e uma grande referência para a diretora, a obra é explicitamente inspirada no livro “A queda do céu (palavras de um xamã yanomami)”, escrita pelo francês Bruce Albert a partir das palavras e memórias de Davi Kopenawa.

Misto de relato, narrativa mítica, análise científica e manifesto, “A queda do céu” realiza uma profunda virada etnográfica, dando-nos a conhecer a história do mundo, do Brasil e do povo yanomami, não da perspectiva do homem branco (nape¨, em seu idioma), mas de um dos mais importantes porta-vozes deste povo.

Como xamã, Davi Kopenawa conhece a sabedoria dos xapiris (espíritos) que lhe aparecem em sonhos desde a tenra infância. O encontro entre xamãs e xapiris, convém que se pontue, é sempre narrado como o momento em que os xapiris dançam para os xamãs, havendo na movimentação dos espíritos a transmissão de sabedorias e imagens mais potentes do que os conhecimentos transmitidos apenas pela palavra.

Entre os nape¨s, diz Davi, se processa exatamente o oposto: apenas a palavra desenhada no papel tem força de lei, ou status de conhecimento oficial. Davi Kopenawa concordou em registrar e publicar suas palavras em livro para alertar sobre os perigos de que o mundo acabe se continuarmos ignorando os apelos da natureza. No fim do mundo, dizem os yanomamis, o céu desabará sobre nós; isto é o que Davi Kopenawa e a Lia Rodrigues Cia de Danças querem nos fazer entender.

Penso que a impressão generalizada de que “Para que o céu não caia” se parece com um ritual advém do desejo de Lia Rodrigues de fazer da dança um encontro tão potente quanto a revelação dos xapiris a um xamã. E da certeza de que, ao falharem as palavras de alerta e denúncia, é preciso que a dança nos reconecte como humanos, e a nós e o mundo, despertando- nos de uma paralisia que nos impede de pensar e agir. Se, e quando o céu cair, não poderemos alegar que não sabíamos. É impressionantemente doloroso e belo esse aviso que a Lia Rodrigues Cia de Danças vem nos trazer desde o mundo dos xapiris, o fundo das florestas e o coração da favela da Maré.

Claudia Vieira Garcia
Assistente da Gerência de Ação Cultural do Sesc para Dança