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Precisamos falar sobre Black Mirror
Talvez maior do que a angústia que muita gente sente ao terminar de ver o último episódio de uma série e do que a ansiedade em esperar vir a nova temporada, é a necessidade de se falar sobre os episódios com os amigos no trabalho, no bar, no jantar.
Essa necessidade de comentar as séries não é novidade e existe desde os tempos das radionovelas. É como se o prazer em ver um episódio fosse prolongado e até multiplicado nessas conversas, em uma lógica parecida com a das longas mesas redondas que sucedem os jogos de futebol de domingo e que configuram um jogo à parte.
Compartilhar visões sobre os episódios de uma série gera ainda uma sensação de pertencimento a um grupo, potencializado ainda mais em tempos de redes sociais, ou seja, reforças laços de sociabilidade. Já quem não assiste às séries muitas vezes sente-se excluído de uma conversa em uma roda de amigos, por não compartilhar daquele repertório simbólico. Em outras palavras, boia.
A sensação de necessidade em comentar episódios de séries parece ainda maior no caso de Black Mirror. Os episódios são tão perturbadores, angustiantes e sombrios que o peso para se carregar sozinho é grande demais e precisa ser dividido em conversas que lembram mais sessões de terapia coletiva, nas quais se exorcizam os medos e traumas despertados pela série, nem que seja para se ter um sono mais leve naquela noite. Vivendo em um mundo em que cada vez mais a realidade supera a ficção, a série virou gíria e passou a ser comum alguns fatos reais serem classificados como “coisa de Black Mirror”.
Há uma diferença, no entanto, entre séries de TV como Black Mirror e as novelas. No segundo caso, em razão de preconceitos de classe e de gênero, muitas pessoas não admitiam que viam os capítulos e tinham vergonha de tocar no assunto, privando-se do imenso prazer em reviver com os amigos as maldades das vilãs e de comentar a beleza das mocinhas e dos galãs.
Já no caso das séries de TV, ainda mais estrangeiras, essa vergonha parece não existir. Sua qualidade é comparada à do cinema norte-americano, um produto amplamente aceito como de bom gosto, a ponto de a linguagem das séries começar a pautar o cinema. Os gêneros das séries variam bastante e, como é o caso de Black Mirror – talvez com exceção de um episódio -, passam longe do romantismo típico do folhetim. Por outro lado, o estigma que acompanhou durante muito tempo o público das telenovelas, associado a senhoras de baixa escolaridade e baixa renda, não acompanha o público de uma série inglesa que é transmitida por um serviço de streaming. Parte da Academia, porém, por incrível que pareça, ainda conserva muitos preconceitos, ora se recusando a estudar seriamente objetos vistos como meros produtos de entretenimento da cultura de massa, ora encarando-os apenas nessa perspectiva.
Black Mirror é uma série particularmente propícia a ser analisada. Quanto ao conteúdo, aborda temas que já são recorrentemente objeto de cursos, seminários e palestras no Centro de Pesquisa e Formação do Sesc, principalmente o impacto que as novas tecnologias têm sobre os laços de sociabilidade, memória, política, punição e artes visuais. Quanto ao formato, o fato de os episódios serem independentes, ainda que tenham um pano de fundo em comum, facilita a divisão do ciclo em palestras ministradas por palestrantes diversos, com formações e enfoques diversos.
Para essa “primeira temporada” do ciclo, foram escolhidos seis episódios, que foram analisados em quatro dias. O professor de Criminologia da USP Mauricio Dieter recebeu a difícil missão de analisar três dos episódios mais densos da série que tratam de ódio, vingança e punição: White bear, Hated in the nation e White Christmas. Pablo Ortellado, professor da EACH-USP, analisa o episódio The Waldo moment, que diante dos resultados das eleições nos EUA no ano passado, pareceu bastante premonitório. Coube a Luiz Guilherme Vergara, professor da UFF, discutir o primeiro e, para muita gente, mais perturbador episódio da série: The national anthem, o famigerado episódio do primeiro-ministro e da porca. Por fim, o professor da UFABC Cláudio Penteado encerrou o ciclo com San Junipero, dando talvez um pouco de esperança para prosseguirmos rumo ao futuro.
Dizer para os alunos assistirem aos episódios antes das palestras parece ser uma recomendação supérflua, ainda que necessária. As inscrições estão esgotadas, mas como não poderia deixar de ser, ainda mais se tratando de um ciclo sobre uma série em que os mecanismos de vigilância e audiência são exponencializados por meio do auxílio tecnológico e a presença física das pessoas já não é mais necessária para elas estarem presentes, as palestras foram transmitidas em tempo real, no Facebook do Sesc em São Paulo. E você pode agora assistí-las abaixo.
Por Danilo Cymrot
Doutor em Criminologia pela USP
Pesquisador do Centro de Pesquisa e Formação do Sesc
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