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Bispo: diante do estranho

Bispo. [Foto: Victor Iemini]
Bispo. [Foto: Victor Iemini]

A minha experiência diante de Bispo foi de desconforto. Cada uma das minhas expectativas se desfez ao longo dos 60 minutos do espetáculo concebido, interpretado e dirigido por João Miguel em um processo de pesquisa que já ultrapassa duas décadas. É que o público sempre trás consigo os próprios preconceitos, referências e expectativas. Ao som do terceiro sinal, eu não estava pronto – ou talvez estivesse “pronto” demais.

É que Bispo, que se passa durante o encarceramento do artista plástico Arthur Bispo do Rosário numa instituição psiquiátrica no século 20, não é propriamente uma biografia, porque aborda um recorte bastante específico de sua trajetória, sem o relato de fatos, algo mais próximo de um testemunho.

Também não chega a ser uma obra sobre o artista em formação, mesmo porque ele se via como um messias. Para Bispo, tudo o que produzia era ritualístico. Sagrado, é verdade, mas não como obra. Também não é possível cravar se a montagem é uma peça ou uma performance, se resulta de um processo de dramaturgia propriamente dita ou se constitui a encenação de um estudo do personagem. Ao mesmo tempo, Bispo não discorre sobre loucura, porque a única perspectiva posta em cena é a do protagonista, coerente dentro do seu próprio sistema de crenças – e, portanto, são, ao seu modo. O que vi foi um espetáculo sobre fé ou quem sabe sobre independência intelectual. Provavelmente, trata das duas coisas porque, a despeito do meu ceticismo, não precisam ser mutuamente excludentes.

Contudo, tudo o que fiz ao longo da apresentação foi procurar na figura do louco lampejos de lucidez, faíscas filosóficas. Em vão. Mais tarde, reconheci nessa minha determinação um vício de repertório: buscava em Bispo o assombro que vivi diante de Estamira (2006), o premiado documentário de Marcos Prado, e em outras tantas reinterpretações da loucura como uma radicalização da genialidade.

Ao menos, eu não estava só nesse deslocamento. Num dado momento, o protagonista perguntou as horas a um espectador da primeira fila. O homem permaneceu calado, impassível, mesmo diante da repetição da pergunta e do constrangimento da plateia, até que uma senhora na fila de trás respondeu por ele. Foi um momento emblemático: a inabilidade do civilizado diante do “louco”, ainda que a pergunta fosse cotidiana, de fácil resposta: “Que horas são?”.

A representação que João Miguel combina a convicção de um adulto particularmente seguro do que acredita com a ingenuidade de uma criança particularmente segura do que imagina. Bispo fala por si, assume a própria voz. Não está dado se é louco ou não. O fato é que, mesmo sem compreendê-lo, somos desafiados a ouvi-lo.

Leandro Quintanilha, jornalista

 

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