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Uma modernidade continuada: a língua que o Ballet Stagium fala

Sonhos Vividos, espetáculo em homenagem a Elis Regina<br>Imagem: Giorgio D’Onofrio
Sonhos Vividos, espetáculo em homenagem a Elis Regina
Imagem: Giorgio D’Onofrio

Por Helena Katz*

Mário de Andrade caminhou pelo Brasil recolhendo as “danças-dramáticas”, nome genérico para a pesquisa etnográfica que empreendeu pelo Norte e Nordeste, em busca de “uma das manifestações mais características da música popular brasileira”. Seu périplo resultou no texto Danças dramáticas do Brasil, que escreveu entre 1934 e 1944, vaticinando que todos aqueles bailados coletivos, que tanto o haviam encantado, corriam grave risco: "Da maneira como as coisas vão indo, a sentença é de morte". Mário desejava evitar que os traços brasileiros ‘genuínos’ permanecessem silenciados pela cultura erudita colonial.

O Ballet Stagium também caminhou por essas regiões, bem como por todas as outras que compõem o território brasileiro, mas com uma maneira quase inversa no lidar com o erudito e o popular. O Stagium não foi recolher nada, ele foi levar. Não desejou preservar o que existia; bem ao contrário, se dedicou a mudar o que estava estabelecido. Com uma proposta inédita e original, varreu o Brasil com a sua convicção de que era preciso e possível fazer o balé “falar português”.

Ao fazer da língua uma metáfora da sua bandeira, de partida, já se inscreveu no legado dos modernistas de 1922, interessados na renovação das linguagens artísticas. Para o Stagium, contudo, não era necessário rasurar a herança colonial do balé para promover a autonomia. O que cabia era escarafunchar dentro dele as alças nas quais apoiar a cultura local.

No dia 23 de outubro de 2020, a companhia inicia o seu 50º ano de atuação ininterrupta, em um cenário que ajudou a erguer. Desde a sua chegada, o que veio acontecendo, no campo da dança, guarda alguma relação com a sua trajetória. Mas há que se lamentar que, para muitos, essa noção não esteja presente como deveria.

Nos anos 1970, o que mais se espalhava pelo Brasil era um entendimento de dança herdado da Europa, ensinado e difundido pelas academias particulares, e praticado nas companhias oficiais. Foi nesse cenário que a atuação do Stagium se iniciou. 

Décio Otero e Márika Gidali, depois apoiados também por Ademar Guerra (1933-1993), identificaram a urgência em desenvolver um tipo de espetáculo que conversasse com aqueles que não frequentavam os teatros. Na época, essa nomeação ainda não circulava, mas o que eles fizeram foi o que depois se chamou de ação glocal, uma combinação de global com local: levaram a técnica do balé, hegemônica no ensino da dança nos países que são chamados de ocidentais (e, portanto, globalizada), que aqui foi trazida e implantada pelo colonizador, a dançar temas locais, com gestos e movimentos que não transitavam no seu contexto. Colaram materiais das danças populares na tradição erudita importada, fizeram o cotidiano se tornar assunto para suas obras.

Mas não pararam por aí. A ‘aclimatação’ glocal não ficou restrita ao fato de continuarem a fazer aula de balé e agregar a seus passos, já tão conhecidos e praticados por tanta gente, outros materiais, recolhidos de danças e manifestações populares, a partir do tema escolhido para cada produção. O que importa nessa operação foi que, de fato, ela demarcou uma proposta de composição coreográfica decidida a desenvolver aquela ‘língua artística’ que seria entendida por todos – e esse tipo de preocupação com a língua já os liga aos modernistas. O seu vasto repertório foi nascendo dessa proposta, ou seja, da combinação do global (balé) com o local (os assuntos e os gestos e passos que eram agregados e o transformavam em dança), e não cessou de ser burilada, obra após obra.

Além da questão especificamente artística, o Stagium também mexeu no comportamento vigente porque criou uma espécie de ‘código de conduta profissional’, que perfurou a etiqueta que regia a relação da sociedade com a dança, e a dos bailarinos com o seu fazer.

Gestaram um outro entendimento de espetáculo e de companhia. Bailarinos passaram a limpar o chão no qual iriam dançar e a ajudar na montagem do que o público assistiria depois. A aula que tradicionalmente prepara o elenco para uma apresentação, passou a ser feita com a cortina aberta. E assim, o público entrava no teatro e ia expandindo a sua compreensão da dança, sendo lembrado de que o que iria assistir, na verdade, já tinha começado, porque era do treinamento diário que a possibilidade de brilhar em cena dependia. E assim, a plateia ia sendo educada a desglamurizar o “dom interno” do artista e a valorizá-lo como um trabalhador da dança.

Foram duas novidades: o tipo de criação que Décio e Márika transformaram na sua assinatura, e o modo do Stagium funcionar como grupo. E foi com a combinação delas que o Stagium promoveu um profundo processo de contaminação, em uma escala que nenhuma outra companhia havia jamais feito, no nosso país. A marca Stagium foi levada para espaços nos quais a dança não se apresentava (ginásios de escolas públicas, praças de cidades nas quais não existia teatro, Febem, desfile de escola de samba entre outros).

Olhando mais de perto para as coreografias que Décio Otero foi produzindo, se percebe que o compromisso em “falar português” nunca desapareceu. E que essa característica fez dele ‘A’ referência em dança moderna entre nós. Uma coerência tão longeva, traduzida em uma consistência robusta, inscreve o Stagium no papel de um operador de mudança na história da dança no Brasil, uma vez que a sua atuação, neste percurso de 50 anos, demarca um antes e um depois do seu surgimento.

Infelizmente, a memória e o conhecimento de história não são o nosso forte. Justamente por isso, cabe a cada um de nós buscar informações que nos permitam identificar a maestria de Décio Otero e Márika Gidali e o valor da contribuição que não cessam de dar para que não nos esqueçamos dos compromissos que a dança precisa manter com o seu entorno. E o nosso com eles, é o de saber ler a sua proposta e reconhecer a sua importância, em tempos nos quais tudo é descartado pela próxima novidade.

Aprender com a persistência deles, celebrar que estejam seguindo. Agradecer por ensinarem que a beleza não está em esperar as tempestades passarem, mas em aprender a dançar na chuva.

*Helena Katz é professora e palestrante com atuação no campo da comunicação e das artes.

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No sábado, 31/10, acompanhe o debate: "Ballet Stagium - Tempo Presente". Na programação do Ideias #EmcasacomSesc, o bate-papo ao vivo apresenta uma reflexão sobre a trajetória do Ballet Stagium, a partir de seu nascimento, sua consolidação e a contribuição da Companhia para o desenvolvimento da dança moderna no Brasil. Assista em youtube.com/sescsp, a partir das 16h.