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A negritude por ela mesma: conheça CENAS PRETAS

INFÂNCIA, GENOCÍDIO, HOMOFOBIA, RESISTÊNCIA E ANCESTRALIDADE

"Esse título, Cenas Pretas, é uma forma de existir e resistir, enquanto artistas e enquanto negros. O protagonismo negro deve acontecer não só com a presença dos atores em cena, mas também na direção, no roteiro, na dramaturgia... É, enfim, uma forma de existir”, afirma Caio D’Aguilar, diretor do Projeto Crioulos.

CENAS PRETAS é o primeiro experimento em formato audiovisual do Grupo de Teatro Projeto Crioulos. A experiência, que mistura teatro, depoimento pessoal e literatura de autores negros, compõe um manifesto artístico em seis curtas-metragens que refletem questões contemporâneas da negritude, como infância, genocídio, homofobia, resistência e ancestralidade, na intersecção com raça.

O projeto foi lançado no dia 26 de setembro 2020, ao vivo pela página do Sesc Interlagos no Facebook. O elenco é formado pelas atrizes e atores Alberto Pereira Jr., Anderson Negreiro, Carlos Deniggro, Fernanda Ross, Ilunga Malanda e Caio D'aguilar - este, também diretor dos curtas. Com diferentes estéticas cinematográficas, as peças partem de camadas emocionais, ritualísticas e paisagens para compor uma espécie de manifesto artístico afetivo pandêmico.

Após a estreia, rolou um bate-papo ao vivo com os atores Alberto Pereira Jr., Anderson Negreiro e o Caio D’aguilar, com mediação de Adriele Duran, socióloga e animadora cultural do Sesc Interlagos.

A mesa foi aberta com uma pergunta essencial de Adriele: “por que Cenas Pretas?” A partir de então, os convidados deram uma aula sobre racismo estrutural, privilégios e luta antirracista. “Eu vejo muito o título como um grito: Cenas Pretas. O vídeo manifesto é um grito!”, começa Anderson Negreiro.“Continuamos ainda com um conjunto de práticas institucionais, culturais, históricas e interpessoais dentro de uma sociedade que coloca um grupo social ou étnico em melhores condições em detrimento de outros”, reflete.

Não é de agora que a desigualdade racial pauta debates, estudos e lutas dos coletivos pretos, que sempre se organizaram para exigir seus direitos. Há 20 anos, a autora Ana Lúcia Valente publicou o livro "Ser Negro no Brasil Hoje", que reflete questões raciais no país. No entanto, desde muito antes dessa época esses contrastes já eram discutidos.

"O 'problema negro' foi gerado com as formações capitalistas. Durante a escravidão, o negro era coisa, uma mercadoria, era considerado não-humano e não tinha com quem competir nessa situação. Somente depois de os negros tornarem-se livres e passarem a disputar posições com os imigrantes e com outros brancos é que o preconceito e a discriminação raciais passaram a ser utilizadas como armas da competição".
(VALENTE, 2000, p. 58)

As estruturas citadas por Negreiro no começo do bate-papo são práticas que formam o que conhecemos por racismo estrutural. “Quando a gente fala em igualdade, parte do princípio que as oportunidades não são iguais”, afirma. Neste sentido, o ator Alberto Pereira Jr. reforça a importância da luta antirracista ser pertencente a todos: “a luta antirracista precisa acontecer pra todo mundo, não só para os negros. A sociedade precisa se movimentar. Mas nós, enquanto grupo marginalizado e vítimas, alvo desse genocídio, a gente se marca e retira também as conotações desviantes, as conotações que podem ser ofensivas”.

A que refere Alberto? Bem, o que há em comum entre “Projeto Crioulos”, “Cenas Pretas”, “Anderson Negreiro”? Aí estão marcadores ressignificados individual e coletivamente que, historicamente com conotações pejorativas, são agora retomados a partir da consciência política de seu significado. Antigas palavras e expressões racistas ganham nova importância no resgate do pertencimento a uma comunidade, no reconhecimento de si e do outro, no poder da ancestralidade.

A fala do ator vem ao encontro com o que escreveu Octávio Ianni em seu livro “Raças e Classes sociais no Brasil”. Os coletivos pretos sempre estiveram presentes no contexto social. E, desta maneira, a partir das organizações coletivas, as lutas foram se tornando conquistas e atos políticos.

“Desde o primeiro instante, no entanto, o negro e o mulato reagem ao preconceito, à discriminação e à segregação raciais. Mesmo antes da abolição, eles já haviam começado a organizar a vida com base na supremacia político-econômica e no preconceito do branco. A partir da abolição, essa reação se refaz, alarga-se e aprofunda-se.”
(IANNI, 2004, p. 115)

Cenas Pretas é fruto de uma jornada de mergulho no íntimo de cada intérprete e suas inquietações, onde os artistas dão vazão às suas criações. O manifesto traz não só muita teatralidade e explorações na estética audiovisual, mas também um estudo aprofundado sobre as relações raciais e sociais brasileiras, que precisam ser reparadas, repensadas e equiparadas.

“Todas as vidas importam! Mas as vidas negras, elas parecem que importam menos do que as outras vidas. Então, enquanto coletivo preto, a gente se intitula preto mesmo é pra resistir, pra marcar e pra falar que estamos vigilantes e correndo atrás. Tamo aqui!”, encerra Alberto.

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A seguir, conheça e assista às peças:

HAMLET PANDÊMICO - por CAIO D'AGUILAR
Inspirado em Shakespeare e Manifesto Dadaísta

Em um laboratório de isolamento, Hamlet Negro reflete o racismo estrutural como sistema Pandêmico, subvertendo a lógica do Manifesto Dadaísta, como um chamado protesto, contra a violência das mortes perpetradas à população negra, conclamando boas novas à demarcação do direito à vida – pela honra, luta e guerra –, como, por exemplo, foi a história do movimento Panteras Negras e da resistência do Quilombo de Palmares.

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LITERATURA NEGRA 1 - por ANDERSON NEGREIRO
Inspirado em Franz Fanon e Aimé Césaire

A relação Colonizador X Colonizado e a violência como ferramenta de manutenção das estruturas de poder, refletidas a partir de paisagens e poesias da literatura negra de Aimé Césaire e Franz Fanon, pela afirmação da identidade ancestral, hipnótica e mágica.

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AUTORRETRATO 1 - por FERNANDA ROSS
Colaboração Textual de João Iglesias

Fernanda Ross narra passagens de sua vida, família e infância. Resgate ancestral e vínculo matriarcal dão o tom do complexo elaborar da mulher negra contemporânea e seus mecanismos de defesa, criados para uma manutenção básica de sobrevivência na sociedade.

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AUTORRETRATO 2 - por CARLOS DENIGGRO
Colaboração textual de Marisa Mainarte

Carlos Deniggro conta lembranças de sua adolescência nos bailes jovens e as diferenças culturais que existiam nos anos 90, na capital São Paulo. Como a cultura negra e hip hop dos Estados Unidos influenciou o empoderamento dos jovens brasileiros, pela música, dança e movimentos urbanos.

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VALSA NEGRA - por ILUNGA MALANDA
Inspirado em Nelson Rodrigues

Maria, mulher comum e as atrocidades que a sociedade comete com o seu corpo. Inspirado no famoso texto “Valsa Nº 6”, de Nelson Rodrigues, o vídeo aborda a violência contra a mulher e, especificamente, o genocídio da mulher negra. Um espaço pra reflexão sobre crimes invisibilizados ou naturalizados socialmente.

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LITERATURA NEGRA 2 - por ALBERTO PEREIRA JR.
Inspirado em James Baldwin

Fragmentos literários da obra de James Baldwin inspiram a narrativa sobre uma relação homoafetiva, os atravessamentos sociais, as dificuldades internas e externas de uma paixão proibida, interracial e perpassada pelo racismo e pela homofobia. Afetos privados condenados sob o olhar discriminatório e retrógrado ainda vinculados ao status quo. Amor e dor. Êxtase e violência.


Clicando aqui você confere a produção completa de Cenas Pretas e o bate-papo com os artistas.