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Como começou o Centro de Música: a história do Canto Coral com Samuel Kerr

Orquestra de Cordas e o Canto Coral, sob a regência de Samuel Kerr
Orquestra de Cordas e o Canto Coral, sob a regência de Samuel Kerr

Era 1984 quando o maestro Samuel Kerr chegou ao Sesc para assumir a coordenação da Orquestra de Cordas. Sentiu que estava faltando ali a atividade de Canto Coral, seu campo de maior atuação e reconhecimento, além de ser terreno fértil para o ensino coletivo. Professor de Canto Coral da Unesp e regente do Coral Paulistano e da Orquestra Sinfônica Jovem do Teatro Municipal, Kerr sempre acreditou que uma orquestra deveria ser integrada ao canto, como uma unidade, um único organismo. Sua atuação foi fundamental para o desenvolvimento do movimento Coral na cidade de São Paulo.

Seu desejo de implementar o Canto Coral veio ao encontro da criação do primeiro programa voltado para idosos do Sesc. "Naquela época, os idosos costumavam se reunir na área de convivência do então chamado Sesc Vila Nova para jogar cartas", lembra Gisele Cruz, que foi convidada pelo próprio Kerr para ser sua assistente. Ex-aluna do maestro na Unesp, Gisele mais tarde se tornou instrutora de voz e trabalhou no que veio a ser o Centro de Música do Sesc por 32 anos, aposentando-se em 2017. "Samuel sugeriu de implementarmos o Canto Coral à tarde para suprir essa demanda de atividade para os idosos. O sucesso foi tanto que jovens e adultos pediram para que um novo horário fosse aberto, à noite. No primeiro ano já tínhamos, por baixo, umas 80 pessoas participando do Canto Coral", relembra Gisele.

No elenco havia pessoas de diferentes classes sociais, etnias e credos. Um dos grandes diferenciais de Samuel Kerr sempre foi a inclusão e a acessibilidade. "Ele foi uma das primeiras pessoas que ouvi dizer que cantar era um direito: ninguém poderia ser proibido de cantar. Que quando se rejeitava uma voz estava rejeitando também uma pessoa", conta Gisele. Kerr referia-se aos costumeiros testes de voz aplicados a quem pretendia integrar um coral.

O maestro também fazia questão de pedir para que os músicos da orquestra tocassem peças mais fáceis para que todos pudessem acompanhar no canto. "Tornar acessível o encontro de qualquer pessoa com a música sempre foi a tônica do trabalho do Samuel", afirma Gisele. Os cantores também tinham liberdade para sugerir repertório. Os ensaios eram leves e divertidos, e contavam com participação assídua dos inscritos, que experienciavam aceitação de como eram, superação de traumas e reconhecimento de seus esforços. Samuel costumava perguntar o que levava cada um a cantar no coral e muitos respondiam que se sentiam respeitados por serem aceitos do jeito como eram e confiantes para acreditar que podiam cantar.

O projeto pioneiro de Canto Coral criado por Samuel Kerr foi experimental em diversos sentidos. Não por acaso foi chamado inicialmente de Laboratório Coral até a concepção do Centro Experimental de Música, em 1989. O maestro não queria criar nenhuma expectativa em relação ao tipo de trabalho desenvolvido e também apreciava a liberdade de criação. "Samuel sempre foi rebelde no bom sentido, trabalhava fora dos parâmetros convencionais, sempre questionando os conceitos. Costumava provocar reflexões como, por exemplo, nos perguntando: A torcida de um estádio não é um coral? O moço do pregão ou o vendedor de jornais na rua não faz música?", relembra Gisele.

Nessa toada, convidou seus alunos para que, juntos, criassem uma série de pesquisas sobre o prédio do Sesc (atual Consolação) e seu entorno: dizia que primeiro era preciso aprender a escutar para então poder fazer música. A primeira delas foi um levantamento sobre a Vila Buarque. A formação das várias chácaras que deu origem ao bairro resultou no espetáculo "Como Vai, Dona Veridiana?", que reunia uma série de canções originais sobre a história das baronesas que viveram ali. "Samuel dizia que a gente até podia cantar uma música sobre a qual não conhecíamos a história e o contexto, mas só depois de conhecer e cantar a respeito do nosso local. Então fazia os arranjos e produzíamos juntos todo o restante, especialmente os figurinos que, nesse caso, retrataram a década de 20, época da história narrada."

Samuel Kerr trabalhou no Canto Coral do Sesc até 1987. Segundo Gisele, seu projeto pioneiro marcou época e se desdobrou nas atividades de canto e coral como as conhecemos até hoje no Sesc. Tinha um compromisso com o coletivo e isso contagiava tanto quem participava dos grupos, quanto o público que prestigiava os espetáculos. "Isso mudou a vida das pessoas, especialmente a dos idosos que viram que podiam produzir e se divertir, e irem além dos cuidados com seus netos. Samuel sempre teve uma atitude muito respeitosa com as pessoas, deixou memórias bonitas e mostrou como é possível se alimentar de maneira memorável com a música."

Hoje, aos 85 anos, segue de casa participando de congressos e bate-papos online compartilhando seu vasto conhecimento em torno da música.