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Habitar Palavras: Tânia Katuapó
A palavra uterina
Na medida do que me é permitido, habito, dentro de um conforto onde observo e vivencio o tempo de forma quase inédita.
Nesses últimos meses, tenho rememorado o tempo de minha infância, crescendo num quintal de terreiro batido, com bica e batedor de se lavar roupa. Havia um pé de Jatobá e uma grande paineira... Eu sentia e sabia quando era brisa e quando era vento.
Hoje em tempos de resguardo por conta do vírus covid-19, minha memória afetiva, de cheiro, de audição, minha percepção mais aguçada, volta a fazer real sentido.
Significado, ou seja ressignificado.
Me volto ao natural. Ao cantar dos passarinhosinhos em seus ninhos a piar, às pombas alvoroçadas e algumas mais calmas como daquelas que você olha e pensa: Essa seria minha amiga.
O cantar do galo da vizinha que desperta às 5 horas da manhã e aí o sol logo chega iluminando e aquecendo o dia, que também aquece as plantas, a pele, o coração.
Aquece a terra repleta de encantaria e memória.
Em meio a pandemia me vem o meu self; como mulher, mãe, avó, contadora de histórias... ser vivente no planeta terra. Ser ligada do cordão umbilical ao cordão invisível que me conecta ao universo numa fiação de sonhos e de vida real.
Salvador Dali deixou seu pensamento: “Um dia terá que ser admitido oficialmente que o que batizamos de realidade é uma ilusão até maior de que o mundo dos sonhos”.
A palavra prematura
O resguardo é a oportunidade do silêncio, do retorno a mim mesma e quando isso acontece, esse silêncio é despertado e é ai que a natureza me começa a fazer sentido. O dia em cada dia. O momento em cada momento. É o presente em excelência.
É como um renascer...
Venho nascendo a cada sol, a cada cantar de galo, a cada lua, a cada aurora. Este retorno é um chamamento ao que vem antes da gente. Ancestralidade.
Eu sou natureza, você é natureza, somos natureza. Tenho ou melhor, alguns de nós estamos tendo a oportunidade de ressignificar sua própria presença, o estar presente. A presença consciente.
Um fato interessante aconteceu. Tenho um pé de margaridas do campo amarelas, que foi ganho de uma amiga de outras terras, de início a plantei num vaso, transplantei para a terra e cresceu muito, a mais de ano e nada de flores, nem sinal. Num dia estava eu a tomar um bocado de sol, do nada me levanto e fui ter com ela. Numa conversa firme disse-lhe o meu desagrado por tanto tempo sem dar flores. Dei-lhe um prazo de 7 dia para que florisse ou seria podada no topo ou seja no pé. Deu 3 dias e os botões começaram a nascer. As abelhas vieram, as borboletas também. E assim cantei e contei histórias. A cumprimentei com alegria. Me agraciei todos os dias. As margaridas vieram formosas e cheirando a mel. Assim veio assim se foi. Hora de podar, nutrir e brotar. Se me for permitido estarei aqui no aguardo de uma outra florada.
Porém o futuro é surpresa e feito de presente. A ação move o tempo de cada ser.
João Guimarães Rosa nos oferta a palavra: “A meninice é uma quantidade de coisas se movendo e a velhice também”.
A palavra prenha
No resguardo reencontro e reconecto com minha história. Tudo se abrindo e remexendo. Vou reinventando memórias – já que as temos e somos cíclicos – como se me tirasse a roupa e me tornasse nua. Tenho percebido que a nudez não me pode faltar.
Tem início no raiar do dia, termina ao seu findar. E é na última hora que revejo minha história até ali. Penso no vento que veio me visitar, no calor do sol, na percepção do tempo.
Na primeira hora da noite é retrospectiva e ao mesmo tempo uma atualização pessoal contextualizando a noite com seu seres. A noite banha o que o sol secou. E nessa transição de noite e dia, as rezas, as orações e agradecimentos. É propicio, é de pratica.
O ficar em casa e escutar o silêncio sentido e consentido me nutre no entendimento dos ciclos da vida.
O tempo em pandemia me recordo de Isabel Allende em O amante Japonês, quando diz: “Você me explicou que da quietude nasce a inspiração, e do movimento surge a criatividade.”.
A palavra que me habita reconecta com meu eu ainda nos primórdios, que me convém uma independência dependente. Dependente do outro, do coletivo. Das amarras e vendas ficaram libertas – quando portas se fecham, frestas e janelas se abrem – e vejo, almejo que redoma não existe.
A noite trouxe seu negro manto cobrindo a mãe terra, a lua brilhou e as estrelas a acompanharam. A madrugada chegou com orvalho úmido, gostoso, cheio de poesia. O galo cantou, o dia nasceu, a vida brotando e tornando seu ciclo de encantarias tanto de alegrias quanto de tristezas.
Elas são passageiras nesta grande viajem que é o viver.
Novos modos e retornos as trombadinhas com beija-flores na cozinha.
Passarinhos que vem comer a ração da cachorrinha Brisa recém adotada. É a conquista, é o jogo de sedução e o namoro das pombas. A música da igreja louvando a Maria, nossa senhora na última hora do dia. A visita das maritacas que escolhem o pé de jabuticaba carregadinho de frutas para celebrar o findar do dia.
Isso e ainda muito mais me inspiram a enternecer meus sentimentos sentidos em tempos de quarentena. Sentidos e nem todos consentidos.
Além de palavras, habitam em mim um estado telúrico feito mina abundante de morada própria e do outro que me habita. Possibilitando o viver pensando também no coletivo.
UBUNTU: “Uma pessoa é uma pessoa por meio de outras pessoas.".
E é assim que a vida vira poema, dando total sentido àquilo que uma vez escutei e guardei: “Do caos vem a ordem!”.
Sobre a autora
Tânia Katuapó Antunes, é contadora de histórias, arte educadora e atriz. No dia a dia se relaciona com a literatura de maneira bem particular, registrando suas palavras em forma de diário, anotações de memória, criações, cantigas e sua própria história.
Há 20 anos realiza pesquisa independente sobre a arte de ouvir e contar histórias, sendo leitora e escutadora de narrativas orais ou escritas. Está à frente da Cia. Vêm Vindo Histórias, tendo participado de trabalhos com a Trupe Cobra D’Água, Bando Arteiros, Grupo Deixa Que Eu Conto, e especialmente no projeto Optica Sonora onde dialoga seus escritos narrando-os junto a paisagens musicais. Em 2015, no Encontro de Aldeias (Chapada dos Veadeiros/GO), recebeu de uma mulher Yawalapiti o nome Katuapó, que quer dizer "bonito".
Habitar Palavras - Biblioteca Sesc Birigui
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