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Lápis da cor de quem?
A construção da educação da Júlia é baseada principalmente no diálogo. Procuramos sempre responder aos questionamentos apresentados por ela da melhor forma e, quando não sabemos, nós falamos: “Não sabemos! Vamos juntos aprender!”.
No que diz respeito à uma educação antirracista, falando por mim, mãe, branca, conhecedora dos privilégios que minha cor traz e conhecedora da história que sempre insiste em colocar o povo preto como minoria sem valor, procuro resgatar muito os ensinamentos da minha mãe. Ela sempre me mostrou o caminho do respeito e a pluralidade do mundo, um conhecimento adquirido por acúmulo de experiências da sua vida, ou seja, lá atrás minha mãe já praticava uma educação antirracista sem nem mesmo conhecer o termo.
Eu procuro frisar muito as características da Júlia em frente ao espelho e longe dele. Ela sabe sobre avós, bisavós, antepassados, pretos e pretas retintos e pretos e pretas de pele clara. Pessoas lutadoras que trouxeram nossa família até este momento. Tento implantar nela a consciência de onde ela está, uma garotinha preta de pele clara, privilegiada, que não passará por tantas situações de preconceito quanto uma pessoa de pele retinta sofre e atravessa.
Eu a coloco na frente do espelho e digo: “Olha esse cabelo, esses cachos, como são lindos!”. Eu digo: “Olha essa pele, que coisa mais maravilhosa que você recebeu”. E assim fazemos com tudo: olhos, boca, nariz. Eu falo: “Nunca permita que alguém fale algo referente a sua cor, cabelo, corpo, pois você é assim, uma pintura toda especial desse universo, única!”. E se alguém teimar em te desrespeitar você pode até revidar, mas a melhor resposta pra essa pessoa é sua felicidade, é você brilhar mais ainda, linda, leve e solta! Eu procuro fazer com que ela saiba da potência que há nela, de tudo que ela pode transformar, com ações e com palavras. E, assim, ela já se saiu muito bem em situações enfrentadas no ambiente escolar.
Incentivo também o uso de palavras positivas, pois ela tinha o costume de falar: “eu não consigo”, “eu não sei”. Então comecei também um diálogo para transformar isso, dizendo: “eu consigo, só preciso perseverar mais”, “planejar mais”, “eu posso não saber agora, mas se eu ler mais um pouco, se eu conversar, se eu procurar conhecimento, eu aprenderei.”.
Eu também a observo como uma verdadeira esponja, como algo que se molda conforme meus atos. Então é uma construção mesmo, um canal de retroalimentação, conforme as demandas surgem (escola, grupos que ela participa, família, amigos etc.), a gente vai conversando, dialogando e aprendendo. Foi assim quando tivemos uma situação com o lápis de cor... Pintar de “cor da pele” que a Julia ouviu na escola e trouxe pra casa. Foi uma construção grande. Cor da pele de quem? Da sua? Da minha? São muitas as cores de pele e um lápis só é pouco para expressar tantas cores. A partir disso, ela começou a perceber e a perguntar por que ela não é da minha cor se saiu de mim. Aí foi a hora de falarmos sobre família, genética, DNA, árvore genealógica etc.
Ela ficou revoltada com os últimos episódios de racismo em evidência na mídia (americanos e brasileiros) e questionou: “Como que pode, mãe? Pela cor da pele eles definem quem morre e quem não!”, “Tem que conversar direito”, “Isso não pode ser assim!”. Sobre relacionamentos abusivos, ela opina, sobre roupas, ela opina. Posso dizer que a dona Júlia não tem “papas na língua” e sempre me traz com facilidade e liberdade as questões que vive e presencia.
Sempre procuro trazer um pouco de tudo, em cada assunto inserir uma sementinha de cada coisa que a vida cotidiana nos traz: racismo, diversidade, respeito, confiança, amor, amizade, perseverança, autocuidado etc.
Com a alfabetização, nós buscamos livros que façam referência e tenham relevância nessa construção que nós acreditamos. Com relação à identidade negra e representatividade, posso citar alguns dentre vários: Amoras, Menina Bonita do Laço de Fita, O cabelo de Lelê, O menino Marrom. O mais recente ela recebeu do Programa Curumim: O mundo no Black Power de Tayó, que ela gostou muito. E quando algum livro apresenta algo que ela identifica como “estranho”, ela mesma corrige “Epa... não é assim, não, hein” e vira o jogo da história, tudo com tranquilidade. Trazemos também bonecas negras, embora ela não seja muito de bonecas (kkk).
Por aqui, vamos seguindo: errando, acertando, respeitando o tempo... e sempre em frente, porque educo também uma mulher. Uma menina que, num futuro breve, se transformará numa mulher neste mundo que ainda sexualiza corpos negros, que ainda é racista e machista. Porém, ainda acredito numa transformação por meio de uma educação que traga a diversidade e o respeito, um mundo onde cada um seja respeitado pelo que é e tenha o seu lugar de fala respeitado.
*Aline Ribeiro é mãe da Júlia e agente de atendimento do Sesc Sorocaba. A Júlia tem 8 anos, preta de pele clara, comunicativa, sorridente, cheia de vida, alegria e doçura. É uma menina curiosa e inteligente. Gosta das artes, de dançar e curte música, ama sua família e preenche todo espaço por onde passa com luz e amor!
Este relato faz parte de uma série de ações realizadas pelo Sesc Sorocaba dentro do Iorubrá, projeto que potencializa e valoriza as culturas negras. Leia também o manifesto escrito por funcionários da unidade.