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Picassos Falsos, Supercarioca e a narrativa que ainda está sendo construída
Humberto Effe e Gustavo Corsi conversaram com a Eonline e contaram sobre a trajetória do Picassos Falsos, que se apresenta dia 31 no Sesc Belenzinho e encerra o "Arquivo Especial Rock Carioca Anos 80"
Continuando a série de matérias sobre o projeto "Arquivo", do Sesc Belenzinho, Humberto Effe (vocal) e Gustavo Corsi (guitarra), dos Picassos Falsos falaram sobre bastante coisa com a EOnline: das negativas do rótulo "alternativo" até Paulo Leminski - tudo virou assunto na conversa. Sem mais delongas, os melhores trechos do bate-papo:
EOnline: Vocês foram construindo uma carreira que antecede o próprio "Picassos Falsos", como "O Verso", certo? E é sabido que grandes bandas do rock nacional ou eram oriundas do Rio de Janeiro (Barão Vermelho) ou se consagravam na cidade (Legião Urbana e Paralamas). O que não se sabe, porém, é como era o underground carioca dos anos 80: onde vocês se encontravam? Ouviam um som e tocavam antes das músicas tocarem na rádio? E, pegando um pouco carona menção ao rádio, qual era a importância da rádio Fluminense FM para as bandas desta cena?
Humberto Effe: Somos do Bairro da Tijuca, no Rio de Janeiro. A Tijuca sempre teve espaços para música, não é por acaso que nomes como Jorge Ben Jor, Erasmo Carlos e Tim Maia começaram sua vida musical lá. No início dos 80 também havia espaços para música no bairro, onde nos encontrávamos, e em alguns começamos a dar os primeiros passos no trabalho da banda. Voltando para nossas origens, não posso esquecer da retomada dos centros culturais, em várias escolas, onde se produziam festivais de música, shows, concursos de contos e poesia, exibição de filmes; enfim, houve uma retomada de uma vida cultural estudantil no início dos anos 80 que foi muito importante para nós também.
Gustavo Corsi: A Rádio Fluminense e o Circo Voador ajudaram, mais do que isso, foram fundamentais para dar visibilidade a uma cena que já existia no Rio. Cena que nós, com 15, 16 anos, desconhecíamos. Éramos da Tijuca, tínhamos nossas bandas e só conhecíamos as bandas de amigos. Com a rádio Fluminense começamos a perceber que havia gente tocando e produzindo há mais tempo. De uma forma mais séria. Neste momento, garotos como nós perceberam que era possível ultrapassar os limites de tocar nos festivais de colégios e festas.
EOnline: Focando na questão geográfica da coisa, a percepção que se tem é que, talvez, em São Paulo, o Picassos Falsos não possuía um público grande (apesar de ter sido atração nacional no Tim Festival de 2004, junto com os paranaenses do Grenade). Vocês sentem isso? O que representa pra vocês fazer um show num projeto voltado para trajetória da banda - de certa forma, um reconhecimento dado pelo crivo do programador do Belenzinho - numa cidade na qual a banda não "estourou"?
H. E.: Independente da participação no Tim Festival, um pouco antes de lançarmos nosso primeiro disco, e mesmo depois, fomos sempre muito bem recebidos em São Paulo. Muitos não acreditavam que éramos do Rio, talvez pela tonalidade de nossa pele, um pouco menos queimada pelo sol e também pelo tipo de som mais caótico que fazíamos, diferente do que havia se conceituado em São Paulo de “som carioca” para as bandas da época, muito baseado na imagem da Blitz. (...) Fazer um show no Sesc Belenzinho nesse momento, em que estamos celebrando os 25 anos do disco “Supercarioca”, é voltar para São Paulo com todo o pé direito do mundo.
G.C.: Antes de assinarmos e lançarmos os discos pela RCA, fazíamos mais shows em São Paulo do que no Rio. Vivíamos no Rose Bom Bom, Madame Satã, Acido Plástico, Dama Shock, Kaleidos e outras casas menos cotadas. A imprensa local era muito favorável e tínhamos um público fiel. Realmente, depois do primeiro disco, São Paulo foi um lugar em que fomos pouco. As músicas tocaram menos nas rádios daí.Somos, provavelmente, mais conhecidos pelo "Supercarioca". As pessoas cantam o show todo, porque conhecem o disco. Suponho e espero que a reação no teatro do Belenzinho vai ser parecida
EOnline: As primeiras músicas de vocês a tocar na rádio foram "Carne e Osso", "Quadrinhos" e "Idade Média", certo? Vocês poderiam falar um pouco sobre o que essas músicas trouxeram para a banda? Pelo menos as duas primeiras, já que uma conta com um incidental de Ismael Silva (da música "Se você Jurar") e a outra acabou sendo trilha de um programa na TV, ambas sendo talvez o prenúncio das misturas pelas quais a banda se tornou conhecida?
G. C.: Depois do lançamento do disco "Picassos Falsos", as duas primeiras foram as chamadas "música de trabalho". Foram as músicas que nos tornaram nacionalmente conhecidos naquela época. Tocamos em todos os grandes programas, incluindo a "Buzina do Chacrinha", o mais conhecido, então. "Carne e Osso" que também inclui uma citação de "Cristina" (Tim Maia e Tibério Gaspar) além do citado Ismael, é uma canção que nos enche de orgulho e surpresa por ter um formato e estrutura muito distante do padrão radiofônico de qualquer época. Um riff de baixo "bluesy", uma "não" levada de bateria constante, a guitarra não toca um único acorde, não há harmonia formal, é praticamente um experimento de ruídos e efeitos e a letra nada convencional, muito passional... enfim, o "anti-hit". Sempre achei muito curioso o fato dela ter tocado em rádios. E foi nossa música mais gravada. Marina Lima, Toni Platão, Nasi além de vários outros artistas e bandas menores já fizeram suas versões para a canção.
H. E.: "Carne e Osso", "Quadrinhos" e "Idade Média", foram as músicas que gravamos em nossa primeira fita de demonstração, em 1986, a chamada Fita Demo. Para nossa surpresa e alegria, as três entraram direto na programação da Fluminense FM. "Carne e Osso" e "Quadrinhos" nos deram visibilidade e de certa forma, sucesso. Foi muito forte começar uma carreira radiofônica com "Carne e Osso" e aquela citação de Ismael Silva, numa época onde muito se falava que o samba perdia espaço para o Rock’n’Roll que o passado da canção brasileira, estava sendo soterrado. Foi importante fincar nossa personalidade musical com Carne e Osso. Idade Média já mostrava uma intenção Brasil no som do Picassos, "Quadrinhos" é o nosso lado Funk, Soul e Black Music que nunca quer e nunca vai nos abandonar. Quando fiz o refrão dela: "meu amor, olhe pros lados, desde criança só lemos os quadrinhos dos jornais", não sabia que estava fazendo um Haicai, verso típico da literatura japonesa e muito difundido no Brasil pelo poeta Paulo Leminski, por isso, salve Paulo Leminski!
EOnline: Ainda sobre a relatividade de "estourar" ou não: vocês assinaram com um selo da RCA, à época, voltado para o rock alternativo, o PLUG. Sem mágoas, não fazer parte do casting principal da gravadora contribuiu para a banda continuar num segmento alternativo? Era interesse do Picassos continuar assim? Hoje, vocês ainda vivem da música do Picassos ou foram tocar outros projetos paralelos à banda?
G. C.: Assinar com o PLUG não foi exatamente uma opção nossa. Já havia o convite da RCA, quando o selo foi criado. Só aí fomos parar lá. Era uma tentativa da gravadora de ter um selo alternativo, espécie de filtro, mas não havia uma diferenciação do casting principal. Nos identificamos, num primeiro momento com a proposta artística do idealizador do selo, o designer Tadeu Valério, que era um entusiasta e fã do Picassos. Era a estratégia para acolher os artistas novos e que não tinham o perfil estritamente "comercial e radiofônico". O Engenheiros do Hawai era do PLUG e virou um gigante rapidamente. Não entramos para a gravadora para ser um grupo alternativo. Nunca quisemos isso. Ainda não queremos.
H. E.: O Picassos Falsos nunca foi uma banda do circuito underground e sempre tentou não ficar preso a um circuito alternativo. Somos uma banda de música popular, que pode ser ouvida por 10 ou por 10.000 pessoas. O fato de ter estado em um selo de uma grande gravadora, na época dos nosso dois primeiros discos, foi uma questão de organização do marketing e do administrativo dessa gravadora, não nos diz respeito. Como é de praxe, na carreira musical de boa parte dos artistas brasileiros hoje, principalmente após a queda do imperialismo e do paternalismo das grandes gravadoras, realizamos trabalhos paralelos ao Picassos. Eu me dedico também ao meu lado autoral, tendo desenvolvido parcerias muito boas com Samuel Rosa, Frejat, Dado Villa Lobos e Mauro Sta. Cecília; além de nos últimos anos ter me dedicado à programação de uma rádio no Rio de Janeiro. O Gustavo faz parte da banda de alguns artistas, como Leoni, Frejat, entre outros; além de formatar outros trabalhos musicais. O Romanholi, baixista, tem uma sólida carreira como jornalista e o nosso baterista Abílio Rodrigues é professor de filosofia. Porém, o Picassos Falsos, sempre é a nossa grande meta, o nosso grande trabalho, o início o meio e o fim de tudo que realizamos.
EOnline: Mais a frente, apesar do sucesso de crítica, após os dois primeiros discos, "Picassos Falsos" (1987) e "Supercarioca" (1988), vocês não continuaram o vínculo com a gravadora e a banda se desfez. Depois de 16 anos, vocês gravaram "Novo Mundo". Como foi se juntar pra fazer esse disco? E é possível relacionar explicitamente o "espírito" de cada álbum com o momento da banda e dos integrantes? 16 anos é idade de um filho adolescente...
G.C.: Havia ali no fim dos anos 80 um novo momento no mercado da música. Surfamos a última onda do que se chamou "B-Rock". Os sertanejos se fortaleciam muito, havia um novo samba/ pagode aparecendo e o espaço para o pop diminuiu muito nas rádios. Fomos dispensados pela BMG, que havia adquirido a RCA. A banda, frustrada e sem muita direção, se dissolveu mas não nos afastamos muito. Continuamos uma colaboração mútua, musicalmente falando. E no início de 2001, naturalmente, nos organizamos de novo. O intuito era fazer música nova. Não gostamos de pensar no Picassos como uma "banda anos 80", o que quer que isso signifique. Adoramos o resultado de "Novo Mundo". É um álbum de canções. Maduro musicalmente. A verdade é que você não percebe, ou melhor, não contabiliza quantos anos tem quando está no estúdio, ou quantos ficou parado sem gravar. Grava-se um disco, uma canção, sobe-se ao palco com um certo espírito que acaba sendo muito parecido com aquele de quando você tinha 15 ou 16 anos e estava começando. Eu, particularmente, acredito nisso, por mais "profissional" que eu queira ser. Mesmo que cada disco reflita um tanto do que éramos em cada época, todos têm cara e jeitão de Picassos Falsos, que esperamos, estejam sempre nas canções, discos e shows que fizermos.
EOnline: Vocês viveram todos os estágios de uma banda, de sua formação ao sucesso de crítica: gravaram uma demo, conseguiram fazer a demo tocar na Fluminense FM, gravaram dois discos em dois anos e depois voltaram com um disco inédito, fazendo shows em festival grande e tudo mais. Se entendermos esses estágios como uma trajetória ou narrativa da banda: qual é o caminho que uma banda consagrada percorre hoje para entrar em contato com seu público cativo e com novos fãs? Vocês entraram de cabeça na internet, fizeram novas coisas? Percebem novos fãs nos shows?
G. C.: Ainda estamos criando essa narrativa. A banda, curiosa e paradoxalmente, ainda é nova. Desconhecida, de algum jeito. A internet é sem dúvida a via. A forma de encontrar nosso público. Já começamos e pretendemos avançar no uso da rede e das mídias sociais. Há sim, uma garotada muito interessada na banda, o que é muito gratificante. Vamos tentar confirmar isso aí no Belenzinho. Vamos ver se os meninos aparecem.
H. E.: A divulgação hoje mudou completamente, não existe muita diferença no processo de divulgação de uma banda nova para um artista com um pouco mais de estrada. Todos tem que ligar o computador, botar o CD ou o DVD debaixo do braço e ir à luta. Acabou o monopólio das grandes gravadoras, o CD é mais um cartão de visitas do que um produto comercial. Temos hoje maior liberdade criativa porém, a luta é diária. A Internet tem nos proporcionado uma aproximação sempre maior com o nosso público e temos percebido uma renovação. O Picassos Falsos e o disco "Supercarioca" percebemos que ainda guardam um frescor ainda soam bem atuais. Para nós também a cada show a cada ensaio. É bom saber que a cada dia poderemos ser surpreendidos com o crescimento de público, a internet tem nos dado essa sensação e acredito que a proximidade de um novo público só tende a crescer.
E os cariocas estarão aqui no teatro do Sesc Belenzinho, neste sábado, 31, às 21h e você é nosso convidado para prestigiar e ver no som, toda essa conversa daqui.