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Habitar Palavras: Márcia Canevari

Um adeus doloroso

A família inteira contraiu COVID-19. Eu, meus dois irmãos, meus pais e meus avós. Nossa família corria o tempo todo, caminhadas, academia, trabalho, escola e em casa fazíamos quase tudo juntos, e a comida era preparada pela vovó, que, dentre todos, tinha a saúde mais frágil. Meu pai cuidava de todos, então ficamos em isolamento em casa, tomando todos os medicamentos, sem receber visitas e recebendo as compras por meio da namorada do meu irmão. Estávamos bem, mas meus pais e meu avô precisaram ser internados. Minha avó, apesar dos sintomas, estava medicada e bem. Eu e meus irmãos fomos melhorando, quase sem sintomas, e minha avó passou a cuidar de todos nós, pois ela foi a que sentiu menos os reflexos da doença.

Meus pais tiveram alta hospitalar, retornaram para casa, mas meu avô ainda seguia internado. Os dias foram passando, as sequelas da COVID-19 são horríveis, meus pais precisaram fazer vários tratamentos pulmonares, fisioterapia, dentre outros. Minha avó, apesar da idade, quase não teve sintomas, mas estava apreensiva porque vovô precisou seguir para uma Unidade de Terapia Intensiva. A partir de então, a comunicação entre nós pelo celular cessou e, com a piora do quadro clínico, o alto comprometimento pulmonar, vovô foi intubado.

A apreensão tomou conta da nossa família, pois meu avô fazia caminhadas todos os dias, tinha uma alimentação regrada, gozava de boa saúde, era incompreensível para todos nós, por que justamente ele.

As horas se passavam, não podíamos visitá-lo, e nosso contato era com uma enfermeira da linha de frente da UTI e com o médico infectologista do hospital. Minha cunhada pode vê-lo através do vidro, mas ele estava sedado. Então decidimos lhe mandar um bilhete, para que o médico lesse para ele no leito: “Vovô, esse vírus passou aqui e acometeu a todos nós, mas já estamos todos curados esperando por sua volta. Saber que o senhor está aí nessa UTI, sozinho, dói mais do que saber da própria doença, porque queríamos estar ai segurando na sua mão, seja para trazê-lo para casa ou nos despedirmos do senhor. Vovô, estamos aqui, unidos em amor como o senhor nos ensinou, em oração pela sua vida. Da sua família que te ama além da vida”.

 No 18º dia de internação, vovô nos deixou num doloroso adeus, e sequer tivemos tempo para vê-lo, tocá-lo, ou lhe dar um último abraço. Essa doença é cruel, ela leva quem amamos, sem nos dar o direito de uma despedida digna. Qualquer dia a gente se encontra, num lugar onde não haja dor, doenças e nem despedidas.

 

Uma cadeira vazia na Academia Andradinense de Letras

Ecaharis Salomão Abud, professora, pedagoga, escritora, poetisa e membro fundadora da Academia Andradinense de Letras (AAL). Aos 84 anos, fazia questão de dirigir o próprio carro e comparecer a todas as reuniões da AAL, que era seu orgulho quando vestia sua beca durante as festividades. Ecaharis nasceu em Lorena-SP, filha de Alexandre Salomão e Leonor Salomão e veio para Andradina com apenas 4 anos, onde o casal abriu um comércio e ali criou seus dez filhos. Ecaharis se casou com o renomado advogado Dr. Nabil Abud, com quem teve dois filhos também advogados, Nicolau Abud Neto e Virginia Abud Salomão. A escritora atuou como presidente da Promoção Social, durante o mandato de prefeito Dr. Edmon Alexandre Salomão, seu saudoso irmão, que era solteiro e ela o acompanhava como a primeira dama do município.

Mesmo sendo uma mulher muito forte, Ecaharis teve grandes perdas, a começar pela doença que levou o seu marido precocemente, um trágico acidente automobilístico que tirou a vida do seu filho e, ao longo dos anos, perdeu irmãos, ficando até 2020, morando com a irmã Leny Salomão.

Ecaharis compartilhava com os colegas da Academia Andradinense de Letras o sonho de ver restaurado o local onde eram realizadas as reuniões Espaço Cultural Poetisa Cora Coralina, com um auditório climatizado, recepção com permanente Feira do Livro, coquetéis para lançamento de novos livros, constantes palestras para alunos de todas as idades proferidas pelos membros da AAL e concurso de redação como forma de incentivo a leitura.

Em julho de 2020, a poetisa fez uma homenagem pelos 81 anos de Andradina: “Andradina brilhante, no calor e afago de amor... Andradina envolvente, quente, de gente atraente; Que era do carro de boi, da carroça, da charrete; Da lanterna, lampião e das matas em profusão; Hoje tem trem e ônibus que desliza pelo asfalto além; Carro, movimento, agitação, que tem até avião. Andradina de gente quente, gente que trabalha; doutor, advogado, delegado, promotor; juiz, dentista, professor; comerciante, lixeiro, sapateiro, lavrador, fazendeiro, tem dinheiro, compra gado, vende gado, come gado, Andradina do empregado; do esmoleiro que, de porta em porta pergunta; tem pão duro? Dona me ajuda, por favor; igrejas, centro espírita, terreiros de macumbas também; juventude que desfila alegre pelo jardim; Avenida Guanabara, Rua Paes leme até o fim; Das crianças felizes que ajuda, crescem, amadurecem... Andradina de Andrade; cidade luz; de uma Urubupungá que seduz; cidade de amor; cidade de valor!”

Ecaharis Salomão Abud foi a única homenageada pela Academia Andradinense de Letras sendo membro fundadora, pois dizia que a AAL fazia parte da sua vida, que era uma continuidade de tudo aquilo que sempre foi, professora, escritora e poetisa.

No entanto, a musa inspiradora da Academia Andradinense de Letras perdeu a batalha para a COVID-19 no dia 12 de novembro de 2020, deixando não só uma cadeira vazia, mas um vazio no coração de cada um de nós e um vazio nos andradinenses, pois Ecaharis adotou Andradina como a sua cidade natal.

 

Sobre o autor

Márcia Sueli Barreto Canevari é jornalista, formada em Letras, autora de centenas de artigos publicados nos jornais “Diário de Três Lagoas”, “Jornal da Região”, “ O Liberal de Araçatuba”, “Jornal Impacto”, Jornal Folha Regional e Revista FR Magazine (fundadora); autora dos livros “O circo chegou” e “Vidas roubadas”, nos quais consta a história do romance entre seus pais Tereza e Teotônio Guaracy Barreto e a morte da mãe vitima de mal de Alzheimer. Márcia Canevari é a atual presidente da Academia Andradinense de Letras (AAL), há 20 anos criou e realiza o Prêmio Melhores do Ano; casada há 37 anos com o professor e fotógrafo Luiz Carlos Canevari; mãe do jornalista Luiz Fernando Barreto Canevari e do estudante de Administração de Empresas Luiz Ricardo Barreto Canevari. A autora tem 57 anos, nasceu em Andradina-SP e sua história se confunde com a dedicação e a arte de escrever.

 

Habitar Palavras - Biblioteca Sesc Birigui

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