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Habitar Palavras: Frida Pascio
Retrato de uma opressão
Deitada aqui no leito deste hospital, na UTI, me recordo de tudo pelo que passei. As memórias vêm e vão como em um flash, como em um filme...
Me lembro de quando era bem pequena, uma criança ainda e gostava de brincar com as roupas da minha mãe e das minhas irmãs. Colocava os sapatos de saltos altos e me maquiava. Também brincava escondido com as bonecas das minhas irmãs, mas sempre que minha mãe me pegava no flagra, ou meu pai mais especificamente, eu levava uma surra de cabo de mangueira.
Quando eu tinha uns cinco anos, meus cabelos eram compridos, no meio das costas, e meu pai os raspou todos enquanto eu dormia. Ele disse que fez isso porque estava farto de me confundirem com uma menina. Eu entrei em depressão quando isso aconteceu.
Na escola, não era mais fácil. Sofria muito bullying, era motivo de chacota, proibida de usar os banheiros, tanto o masculino quanto o feminino, e ainda apanhava dos demais garotos. Ninguém me defendia: nem professores, nem inspetores, nem coordenadores e nem diretores. Muito pelo contrário, eles me culpabilizavam pelo meu jeito de ser “tão feminino”.
Acabei desistindo da escola e dos estudos e aos onze anos fui expulsa de casa pelos meus pais. Sou de uma cidade pequena do Nordeste e já nas ruas acabei caindo no canto de sereia de uma cafetina. Ela disse que seria como uma mãe para mim e me levou para São Paulo, capital.
Comecei a me prostituir aos doze anos e acabei aplicando silicone industrial nos seios, coxas e bumbum para ficar com formas mais arredondadas e curvilíneas e, com isso, atrair mais clientes, pois esse era o padrão das garotas de programa que eles procuravam.
Se arrependimento matasse... Aliás.... Está me matando.
Atualmente, estou com dezessete anos. Faz uns meses, eu dei uma topada na quina de uma mesa. O local inchou e começou a vazar óleo, porque o silicone líquido industrial não é próprio para o corpo humano e serve para lubrificar motor de carros ou turbinas de avião. O óleo não parava de vazar e o local começou a infeccionar. Passei a ter febres altas de quase quarenta graus.
Estamos em 2020 e agora tem um novo tipo de vírus, coronavírus, COVID-19, que se alastrou mundialmente, matando milhões de pessoas. O recomendado pela Organização Mundial da Saúde foi ficar em casa e fazer quarentena, mas eu sou uma travesti garota de programa, assim como as outras 90% das mulheres travestis e transexuais do Brasil, e tive de ir às ruas batalhar na pista para poder pagar as diárias da cafetina e ter onde morar e o que comer.
Acabei contraindo coronavírus de algum cliente que não se cuidou, e minha infecção do silicone industrial junto da COVID-19 foram infecções demais para meu organismo aguentar combater e acabei internada.
Agora estou internada na UTI do hospital, com uma infecção generalizada, febres altas e intubada, respirando por aparelho respirador.
Sinto me faltar o ar e a cada inspirar, quando eu puxo o ar, eu sinto como se facadas me apunhalassem o pulmão e rasgassem minha pele e eu estivesse em pleno oceano me afogando e lutando por um pouco de ar. Não sei quanto tempo ainda me resta... Espero superar mais essa batalha em minha vida...
(Naquela noite, Thiffanny morreu por infecção generalizada e insuficiência respiratória).
Sobre a autora
Frida Pascio Monteiro é uma mulher transexual. Sua relação com os livros se deu desde muito pequena: sua mãe tinha o hábito de ler para ela todas as noites. Por ser transexual, sempre sofreu muito bullying na escola e se refugiava, literalmente, na biblioteca da escola, com os livros como seus únicos amigos. Quando cresceu, decidiu cursar Letras, tamanho o seu amor pelas palavras e por literatura em geral. Escreve desde criança. Variados gêneros: poesia, conto, crônica. Terminou recentemente seu Mestrado em Educação Sexual pela UNESP de Araraquara e se dedicou em todo este tempo em uma escrita mais técnica, formal, acadêmica. Também escreve conteúdo político para o site do partido no qual milita.
Habitar Palavras - Biblioteca Sesc Birigui
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