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Escultura e movimento: da representação à cinética
*Por Thiago Ruiz
O século XX marca a rápida transformação dos modos de produção e das relações sociais, o que também abala as tradições no campo das artes. O surgimento das várias correntes artísticas de vanguarda (como o cubismo, o futurismo, o concretismo etc.) opera uma revolução nas linguagens artísticas, que passam a sofrer profundas alterações nos seus meios e procedimentos. Em especial na linguagem escultórica, os elementos formais anteriormente observados, como inalterabilidade e permanência, são colocados em xeque, alterando os meios de representação usados pelos artistas, o que irá possibilitar a experimentação de elementos de forte caráter temporal.
Contudo, antes de observarmos como essas mudanças impactaram as práticas e os procedimentos artísticos, iremos discorrer brevemente sobre o movimento e seu pensamento na representação da escultura tradicional.
Ao longo dos séculos e em diferentes culturas, a escultura pretendeu representar o movimento a partir das tensões implícitas pelo volume geométrico de formas estáticas, cujos suportes se baseavam em uma materialidade perene, como o mármore ou o bronze, pensados para resistir à passagem do tempo.
A apreensão de uma ideia de continuidade, por um meio que não pode contar com o fator temporal para desencadear suas ações, buscou esquemas que escapassem ao estado visualmente estável do eixo vertical ou horizontal, através de uma série de convenções que trouxessem dinamismo para representar a presença do movimento (Fig. 1).
Fig. 1. Hagesandro, Atenodoro e Polidoro de Rodes.
Laocoonte e seus filhos (c. 175-50 a.C.)
Fonte da imagem: Wikipedia
Desse modo, na representação escultórica tradicional o movimento de um corpo em relação a si próprio ou cena é apenas sugerido. Tal alusão recorre a estratégias para condensar na matéria imóvel a impressão de um desdobramento temporal conseguido pela síntese da forma; consequência de análises baseadas na experiência e subjetividade de cada artista quanto à escolha do instante perfeito para ser referenciado na obra (Fig. 2).
Fig. 2. Antonio Canova.
Hércules e Licas (1795-1815)
Fonte da imagem: Wikicommons
Aqui, cabe salientar que, além do momento fixado na imagem tridimensional pelo ato criativo e os artifícios do escultor, outro fator preponderante para que a obra adquira o sentido almejado passa pelo observador, pois, é no conjunto das qualidades da imagem esquematizada a partir do dinamismo impresso em suas formas, junto às memórias, conhecimentos e contextos culturais trazidos pelo espectador, que a impressão do movimento na escultura tradicional se completa.
Assim, a totalidade do movimento na representação tradicional perfaz a soma e o jogo entre as qualidades dinâmicas da composição e a reconstrução mental do observador, segundo o repertório cultural de sua época (Fig. 3).
Fig. 3. Auguste Rodin
O Homem que anda (1840-1917)
Fonte da imagem: Museu Rodin
Com a intensificação da industrialização e a aceleração dos processos tecnológicos que marcam as transformações sociais no início do século XX, o pensamento estético e os procedimentos artísticos são impactados profundamente. Velocidade e dinamismo são palavras que passam a invadir o imaginário criativo europeu, permitindo novas reflexões que fazem expandir o conceito de movimento e as técnicas empregadas em sua representação, como os estudos desenvolvidos pelas vanguardas artísticas do cubismo e do futurismo, que abrem novas possibilidades de abordagem formal quanto ao tema.
Se o cubismo buscou por uma representação da imagem escultórica a partir da fragmentação e decomposição parcial ou total dos volumes e relevos, dando origem à uma visão simultânea do objeto (Fig. 4), no futurismo a forma expande e se prolonga no espaço como um modo de apreender o deslocamento total do objeto, o que demonstra um desejo pela ação e pela mudança enquanto essência da representação (Fig. 5).
Fig. 4. Pablo Picasso
Guitarra (1912-1914)
Fonte da imagem: MoMA
Fig. 5. Umberto Boccioni
Formas únicas de continuidade no espaço (1913)
Fonte da imagem: Wikicommons
Além disso, o concretismo foi outro movimento artístico de vanguarda importante para compreendermos o desenvolvimento do movimento nos procedimentos artísticos da escultura, sendo influenciado pelo valor plástico da velocidade do futurismo italiano, porém, com críticas ao rigor formal que aplicavam à representação e seu confinamento estético.
A estratégia adotada pelo artista construtivista buscou a experimentação estética influenciada pela exploração científica com o interesse interdisciplinar entre os campos da arte, da arquitetura e da tecnologia industrial, permitindo abordar o tempo e espaço como fenômenos integrados.
Nesse contexto integrante entre arte e ciência, surgem as primeiras estruturas cinéticas que trazem o movimento real para dentro da obra possibilitado pelo uso de novas técnicas e materiais, se afastando dos postulados tradicionais da escultura.
Logo, na escultura cinética, o volume não é um dado concreto correspondido por suas coordenadas geométricas de altura, largura e profundidade, mas experienciado como uma sensação visual criada pelo movimento da forma em uma dada área do espaço (Fig. 6), deslocando assim a relação anteriormente estabelecida pelo volume escultórico como síntese do movimento, então interpretado segundo o ponto de vista do observador.
Fig. 6. Naum Gabo
Construção Cinética (1919–20, réplica de 1985)
Fonte da imagem: Tate
Com isso, o espaço para a imagem cinética é, portanto, o lugar em que ocorre o movimento e a alteração da forma. Isso passa a implicar a concepção da obra enquanto um processo, e não somente na disposição de um objeto.
No entanto, as primeiras obras cinéticas que buscaram a ação através de mecanismos e engenhos elétricos para que o movimento fosse evidenciado, nem sempre eram realizáveis devido às limitações mecânicas da época, muitas vezes gerando distorções entre a adaptação do trabalho ao maquinário.
Por conseguinte, uma das soluções encontradas para lidar com o problema foi a introdução do ar como força geradora do movimento, de acordo aos princípios de equilíbrio e inércia em estruturas móveis, possibilitando o desenvolvimento de uma obra cinética capaz de ser posta em permanente movimento (Fig. 7).
Fig. 7. Alexander Calder
Alçapão de lagosta e cauda de peixe (1939)
Fonte da imagem: Wikiart
Essas estruturas receberam a denominação de móbiles; cuja característica herdada do suprematismo russo utiliza formas geométricas desvinculadas de um caráter figurativo, favorecendo a percepção do movimento real como uma qualidade constituinte da obra.
Por isso, nos móbiles – bem como na arte cinética em geral –, o tempo adquire um papel essencial, articulando processos e tornando-se parte integral no trabalho, apresentado como um sistema em transformação em que as mudanças ordenam e controlam a organização interna do todo.
Ademais, os mecanismos que regulam o movimento e a consequente organização dinâmica das estruturas cinéticas encontram na luz artificial um dado perceptivo muito importante, em especial nos trabalhos que absorvem o efeito luminoso como a obra em si, e em diálogo com o espaço circundante (Fig. 8), o que, a partir dos anos 1950, perfaz o interesse de práticas que retomam o uso dos engenhos mecânicos, em parte devido à superação das limitações técnicas das décadas anteriores, e em parte pelo enfraquecimento das objeções quanto ao uso da tecnologia como objeto artístico.
Fig. 8. Abraham Palatnik
Aparelho cinecromático (1955)
Fonte da imagem: Enciclopédia Itaú Cultural
Com efeito, a luz passa a modular o espaço imaterial de mudança da forma como o elemento primordial na percepção do movimento, estabelecendo um ambiente sensório onde o espectador não apenas observa o trabalho, mas é envolvido por ele, o que, em linhas gerais, irá cooperar para o desenvolvimento de novas práticas artísticas tridimensionais cujas proposições são ativadas enquanto processos estabelecidos pelo público (Fig. 9).
Fig. 9. Erwin Wurm
Esculturas de um minuto (1997)
Fonte da imagem: Tate
Por fim, o breve recorte até aqui discorrido nos permitiu observar como o movimento participa na concepção da escultura, de acordo com as transformações históricas ocorridas na sociedade e os novos meios de produção disponíveis, segundo as intenções de cada artista, seja pelo desejo em capturar a expressão vívida de um momento vertido em matéria inerte – quer pela síntese da forma ou a expansão simultânea do objeto –, seja pela observação do fenômeno temporal acionado por fluxos mecânicos ou naturais em estruturas móveis que animam o espaço criado, ou criam espaços animados.
Referências consultadas
ARGAN, Giulio C. Arte Moderna. São Paulo: Companhia das Letras, 1992 (trad. de Denise Bottmann e Federico Carotti).
BRETT, Guy. Kinetic Art: the language of movement. London/New York: Studio Vista/Reinhold, 1968.
JESUS, de Eduardo (org.). Walter Zanini: vanguardas, desmaterialização, tecnologias na arte. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2018.
KRAUSS, Rosalind E. Caminhos da Escultura Moderna. São Paulo: Martins Fontes, 1998 (trad. de Julio Fischer).
MARTÍN, Paris Matía; GONZÁLEZ-MENEZES, Elena Blanch; AMO, Pablo de Arriba del; GÓMEZ, José de las Casas; MUÑOZ, José Luis Gutiérrez. Conceptos Fundamentales del Lenguaje Escultórico. Madrid: Ediciones Akal, 2006.
*Thiago Ruiz é educador do Espaço de Tecnologias e Artes (ETA) do Sesc Vila Mariana. Graduado pelo Centro Universitário Belas Artes de São Paulo e Mestre em Processos e Procedimentos Artísticos pela Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” – UNESP. Também é artista e pesquisa diferentes articulações da criação sonora com as artes visuais.
No FestA! – Festival de Aprender 2021, Thiago ministra a oficina online “Escultura e Movimento: da Representação à Cinética”, nos dias 25 e 26/3 (as vagas já estão esgotadas).