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Precisamos falar sobre a solidão da mulher negra
Por Lilian Ambar*
“A gente não nasce negro, a gente se torna negro..." É com este trecho de um depoimento de Lélia Gonzalez, uma das fundadoras do Movimento Negro Unificado (MNU), publicado em 1988, que decidi começar a falar sobre a minha história de mulher negra.
Quem me vê hoje, com os cabelos naturais e encaracolados, não deve fazer ideia de que passei a maior parte da minha vida alisando o cabelo. O processo começou quando eu era adolescente, teve uma breve pausa e depois seguiu até os meus 36 anos. Hoje, aos 42 anos, entendo a transição capilar como o marco de uma trajetória de resgate da minha identidade, de ir ao encontro das minhas raízes e ancestralidade e, como disse Lélia, de me tornar negra. Reconheço que eu tentava me encaixar e ser aceita a partir de um padrão vendido pela sociedade: eurocêntrico, de mulheres brancas, magras, com cabelos lisos e cisgêneras.
Eu cresci em uma família negra, de classe média, da periferia da zona norte de São Paulo, com muitas vantagens. Estudei a maior parte da minha vida em escola particular, tive meu primeiro carro aos 19 anos, viajava para a praia nas férias e feriados, me formei em uma universidade particular aos 21 anos, mas também comecei a trabalhar muito cedo e, assim, aprendi a valorizar tudo que tive.
Porém, se por um lado houve benefícios por ser uma jovem de classe média, por outro, a cor da pele me afetou diariamente, principalmente na escola e nas relações afetivas. Mesmo eu tendo a cor da pele mais clara – o que poderia me trazer "algumas vantagens" na sociedade racista em que vivemos –, quando olho para o passado, com todo o entendimento que venho construindo nos últimos anos, consigo enxergar o quanto o preconceito me trouxe solidão, poucos relacionamentos afetivos e um em que o racismo da família era muito evidente.
Sim, mulheres negras são preteridas. E eu levei muito tempo para entender e aceitar isso. Falar sobre o assunto não é fácil, dói, mas encaro este momento como uma forma de lutar abertamente contra o racismo, contra a hipersexualização dos corpos negros e contra a escravidão que aprisiona as mulheres pretas até hoje. Eu sinto que quanto mais eu falo, mais me fortaleço e posso ajudar outras mulheres a se encontrarem e a se fortalecerem também. Assim como fui acolhida por outras mulheres negras, estas palavras reverberam em forma de acolhimento, de encontro, de espelho, de ouvir e de poder, assim, lidar com nossas dores.
Falando do meu lugar de mulher cis e heterosexual, ressalto que não é mentira, exagero ou "mimimi" quando falam que os homens veem a mulher negra como um corpo, que homens brancos só querem mulheres negras para fins sexuais e homens negros preferem as mulheres brancas. Claro que não dá para generalizar, mas é assim que tem acontecido com inúmeras pessoas ao longo da história. E o que isso gera? Perda de autoestima, de confiança em si mesma, solidão e até depressão.
Ser mulher negra é ter que construir todos os dias a nossa autoestima, é lutar contra os estereótipos, contra o preconceito, contra os comentários sobre seu cabelo, seu fenótipo, contra a falta de representatividade, mas é também encontrar apoio de outras mulheres pretas para seguir adiante, com força e resiliência. É saber que todo dia será de luta, de afirmação, de desconstrução, de entendimento e de descobertas de como podemos combater o racismo estrutural.
Eu me torno negra todos os dias, cada dia com mais intensidade... assim, sinto que afeto os que estão ao meu redor, principalmente aqueles que ainda estão com os olhos fechados para a questão da negritude. Eu sou uma militante constante, daquela que não perde a oportunidade de falar sobre o quanto o racismo destrói vidas e prejudica toda uma sociedade... aquela que se torna a chata do "rolê". Assumi este papel enquanto cidadã que luta por um mundo melhor, que respeite as pessoas por quem elas são, e não pela cor da sua pele ou pelas suas escolhas pessoais.
*Lilian Ambar é jornalista, ativista da causa da criança e do adolescente, é co-fundadora da Associação Projeto Parabéns, milita diariamente por uma sociedade que respeite e acolha a diversidade. É editora web do Sesc Sorocaba.
Este relato faz parte de uma série de ações realizadas pelo Sesc Sorocaba dentro do Iorubrá, projeto que potencializa e valoriza as culturas negras. Leia também o manifesto escrito por funcionários da unidade.