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Entre a Serra e o Oceano

Cena do filme Entre a Serra e o Oceano
Cena do filme Entre a Serra e o Oceano

*Por Jorge Grinspum

Quando vemos uma adolescente negra atravessar, com sua velha e surrada bicicleta, as amplas pistas da rodovia que separa o chamado ‘sertão’ de Bertioga do luxuoso condomínio Riviera de São Lourenço no litoral paulista, somos conduzidos - nós, espectadores, pela linguagem cinematográfica, a uma espécie de desencantamento: entre a serra e o mar, a (des)construção da identidade de uma jovem caiçara.

Somos levados, desde o início desta jornada, por planos gerais, enquadramentos criativos e bem estudados, sons da natureza em registros sonoros precisos, possibilitando que acompanhemos sua trajetória de perto.

Partindo de sua casa, numa humilde vila serrana, cercada pela mata atlântica, despede-se de sua mãe e segue pedalando. Ultrapassa poças d’água nos caminhos de terra batida da vizinhança, até que a corrente de sua bicicleta escapa - uma cena chave para a conhecermos, em intenso momento de subjetividade, nos tornando cúmplices do olhar distanciado da protagonista: ao interromper seu deslocamento, sentar-se e contemplar o leito de um braço de rio, identificamos junto com ela, sua relação com aquele ambiente natural e ancestral - suas raízes, das quais parece estar se despedindo ao levantar e prosseguir, afastando-se contrariada, seguindo rumo a seu destino. Pedalando por ruas de terra, passa por casas em construção e pequenas lojas, numa urbanidade primária, em um típico bairro periférico.

As cenas que se seguem indicam que os sujeitos envolvidos na produção – jovens da comunidade local, participantes do curso “Olhares de Bertioga”, do Laboratório de Cinema do Sesc Bertioga e do Programa Juventudes – têm ali a oportunidade de expressarem cinematograficamente pontos de vista sobre suas existências e reconstituir, navegando no domínio do subjetivo, o drama da especulação imobiliária, da desigualdade social e da invasão e exploração descuidada dos territórios em que habitam. Personagens de um modelo de ocupação errático de espaços da natureza, os jovens realizadores, então instrumentalizados pelo curso, mostram que em contato com os códigos do fazer cinematográfico, podem desvelar as transformações do universo caiçara – tantas vezes coletivista e funcional - para o caótico, disfuncional e injusto modo de vida das cidades, transportado para a beira do mar.

A estrutura narrativa adotada pelos realizadores do curta nos instiga sutilmente a identificar e reflexionar para diversas violações e supressões de direitos básicos, tanto dos cidadãos da comunidade local como, de forma autodestrutiva, para todos agentes envolvidos - ativos e passivos – impactados pelos ditos custos da modernização e suas consequências, que se voltam cada vez mais contra tudo e todos. 

A não preservação do meio ambiente e o assédio socioeconômico sobre os moradores e sua cultura material e imaterial, que da mesma forma são apresentados, aqui, “do outro lado da estrada” - a ‘locação’ deste filme, vem ocorrendo indiscriminadamente em inúmeras outras partes do país e do planeta, em alarmante contraste com aquilo que chamamos de Direitos Humanos.   

Assim, nós, os espectadores, quando passamos a nos relacionar de maneira sensível com a personagem e o filme, podemos ver e entender como é o presente, como era o passado e quais futuros são possíveis para a jovem-atriz, seus colegas de curso e os moradores das vilas e cidades que estão entre a serra e o oceano.    

 

*Jorge Grinspum é comunicador social e professor de Jornalismo e Rádio e TV. Atua também como diretor, curador e produtor cultural, tendo elaborado eventos de cinema como o CineComentado e o Entretodos - Festival de Curtas Metragens de Direitos Humanos, além de diversos projetos audiovisuais.