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Eu não sou o seu vizinho
*por Coletivo Bodoque
Sob o capitalismo, um sistema econômico onde tudo é convertido em mera mercadoria, incluindo pessoas, por qual motivo moradias estariam numa condição diferente? O excedente dos lucros de todo e qualquer setor econômico, retirado dos trabalhadores via mais-valia (sempre bom lembrar), parece ter encontrado um lugar razoavelmente sólido para repousar: terras e imóveis. Infelizmente, moradia não é entendida como um direito, mas sim um setor econômico altamente rentável para alguns.
Eu não sou o seu vizinho se propõe a falar sobre isso. O documentário-ensaio sobre desigualdade social e especulação imobiliária em Bertioga, litoral sul de São Paulo, maneja a energia fornecida pelo choque entre duas representações antagônicas: de um lado, prédios e mansões chiques, com vista para o mar; de outro, pessoas vivendo em moradias precárias, prestes a serem despejadas. Um x demarca as casas que devem demolidas pelo Estado. Enquanto isso, famílias buscam conviver com o informe de que suas casas, em breve, não estarão mais ali.
O prólogo anuncia a tônica crítica que será adotada. Em um depósito de materiais de construção, empilhadeiras e tratores organizam as mercadorias que descansam sob a garoa. Ao mesmo tempo, ouvimos um sem-teto que agradece a equipe do filme "em nome das pessoas que são moradoras de rua" pelo apoio. A fusão entre a narração de uma pessoa sem-teto e os materiais em estoque indica que o tijolo, brita, aço são, antes de objetos de uso, mercadorias. Nos planos seguintes, os materiais parecem se converter em casas populares e apartamentos caros. Se anuncia uma Bertioga dividida.
Nunca vemos o rosto de quem fala; e o que ouvimos está quase sempre em oposição ao que vemos. As vozes sem corpo inteiro falam sobre morar na rua, o direito à propriedade privada garantida pelo Estado, sobre uma Bertioga "quando tudo era mato", aluguel, contas altas, despejo, direito à moradia, desigualdade e progresso.
Na última sequência, ouvimos uma história em primeira pessoa, apoiada por imagens de um apartamento de classe média vazio, onde um homem conta que ocupou um imóvel e como foi o primeiro contato com o proprietário que o notou. Sem desfecho, o ato de ocupar parece sugerir uma síntese frente ao problema anunciado no decorrer do documentário.
Quando assistimos ao plano onde vemos um congestionamento de carros na rodovia que margeia a cidade, é criado um sentido específico para quem vive ou conhece Bertioga. Na alta temporada, Riviera de São Lourenço, condomínio de luxo da classe média alta paulistana, deixa de ser uma "maquete" fantasma. Nesse período é comum se esgotar o fornecimento de água das zonas periféricas de Bertioga, e inversamente, subir a oferta de bicos como de faxina, garçom e camelô. Fora do contexto turístico do verão, o cenário se desarma, restando apenas os apartamentos vazios.
Em um dado momento, ouvimos uma voz que diz: "Todo mundo tem que ter uma casa [...] é a coisa mais chique que existe no mundo". Claro que a especulação imobiliária é fruto do modus operandi do capitalismo global e não um traço exclusivo de uma ou outra cidade. Na capital de São Paulo, a poeira toma conta de cerca de 290 mil imóveis, que dormem e acordam vazios. Enquanto isso, o déficit habitacional da região metropolitana da cidade chegou em 1 milhão de moradias.
Outra voz parece concluir o ápice de tensão dos depoimentos. Vendo mansões, ouvimos: "Como você vai arrumar serviço, se você não tem um endereço? Nossa Senhora, se pudessem matar nós, matavam". A verdade é que matam. A ética do lucro aceita que algumas vidas sejam menos valiosas, ou até mesmo sacrificáveis. Mesmo não sendo possível dimensionar os estragos objetivos e subjetivos que pessoas em moradias precárias (ou sem nenhuma moradia) sofrem, é muito evidente que o direito de morar parece ser a porta de entrada para acessar todo e qualquer outro direito. Na prática, como estudar, acessar ao sistema de saúde, trabalhar ou usufruir de aparelhos culturais sem um lugar para morar?
Multidões de pessoas em tamanha precariedade e sofrimento não são um acidente de percurso de uma certa democracia que falhou - é um projeto das elites que gerenciam caoticamente o sistema capitalista. Esperar que essa mesma lógica nos tire desse buraco é legitimar este projeto, por cinismo ou ingenuidade.
Eu não sou o seu vizinho, assim como qualquer obra, independente do tamanho, que se propõe a defender os mais vulneráveis e apontar violências naturalizadas, deve ser comemorado. Na trincheira da batalha de ideias, o audiovisual pode exercer um papel cada dia mais importante na projeção dos interesses dos oprimidos e oprimidas; papel potencializado ainda mais se articulado com movimentos e organizações populares que lutam também na esfera material.
*O Coletivo Bodoque busca desenvolver e colaborar com projetos transformadores da sociedade, impactando imaginários e trazendo novas percepções sobre temas relevantes às vidas dos oprimidos, por meio de produção audiovisual e educação popular.