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Casa, Pergunta e Convivência: possibilidades da mediação em artes visuais #EducativoSaladeEstar

por Jane Eyre**


Em 23 de Janeiro de 2020 transformamos um dos espaços de convivência do Sesc São Caetano em uma Sala De Estar. Esse cômodo abrigava oito obras do Acervo Sesc de Arte Brasileira e uma cenografia que buscava acolher histórias. Atualmente, nem todas as casas têm um sofá – a minha, por exemplo, não tem – ou mesas de centro, estantes com livros, iluminação adequada e, menos ainda, uma charmosa máquina de escrever.  Mas curiosamente, toda casa guarda vestígios artísticos em seus cantos.

E essa é uma das intenções do Educativo da exposição:
coletar os rastros artísticos escondidos pelos cantos das casas e das pessoas

Como é possível coletar vestígios de modo que esta colheita seja mais próxima de um inventário do que de uma caça? Para que servem vestígios de arte e convivências? Como se começa uma conversa?

A partir dessas perguntas, este texto segue a estrutura em que as propostas de mediação dessa exposição tentam se construir, no que chamamos de “tete a tete”, uma conversa em primeira pessoa.

Quando se escolhe uma obra ou uma cenografia para compor uma exposição se escolhe também uma história e principalmente um jeito de contá-la, e a narrativa que contamos com este projeto nasce da biografia da Unidade: duas casas adaptadas, no bairro Santa Paula em São Caetano do Sul, e que, juntas, deram vida a um equipamento cultural.

Inspirado pela arquitetura, este espaço físico passou a compor entre seus cômodos o imaginário de um tipo de casa acolhedora: quintal com hortas, espaço aconchegante de leitura com mantas para o frio, lousas indicando as programações do mês e variados detalhes que justificam a frase mais comum do público frequentador : “ah, aqui nos sentimos em casa!”
 

Mas o que é sentir-se em casa?

“Moradas” por Vitória Fogaça, educadora da Exposição Sala de Estar


É desse encontro entre arquitetura e modos de convívio que a exposição Sala de Estar é pensada pela curadora Valquíria Prates, e as obras expostas são selecionadas em cursos abertos de curadoria compartilhada em um exercício coletivo que envolve escuta e tomada de decisões e, portanto, exercício de convivência necessariamente.

Assim, é a partir desses pontos de partida  que a casa, simbólica e materialmente, e o conjunto de elementos e histórias biográficas daquelas e daqueles que a fazem viva se tornam território e fonte de investigação e experiência. Mas, as grandes perguntas que ainda ecoam parede adentro são: como criar pontes entre essas casas das quais falamos e as várias que esperamos descobrir através do público? e o que, afinal, é sentir-se em casa?

A mediação em uma exposição é, dentre muitos caminhos, a chance de estabelecer pontes entre ideias, faladas ou em silêncio. Você já dividiu silêncio e olhares com alguém enquanto via um porta-retrato desconhecido de uma casa mais ou menos familiar? Às vezes dividir silêncio em uma exposição de arte pode ser algo assim.

A equipe que integra o Educativo Sala de Estar é constituída por pessoas moradoras da cidade de São Caetano do Sul e que compõem um grupo de artistas da região do ABCDMRR, escolha proposital que busca alinhavar pontos de encontro entre sujeitos, redes locais e trajetórias pessoais atravessadas pela relação afetiva com a cidade, de forma que ao nos desprendermos de uma ideia de neutralidade seja possível assumir a localidade que ocupamos nesse mapa e, novamente, cruzar território e biografia em perspectiva, na proposta de que a caminhada entre o ato de desconhecer e conhecer o outro e o que o habita – cidades, casas, pessoas e obras de arte –  seja um convite à radicalidade potente de uma convivência diversa e plural, que encontre na pergunta e em experiências artísticas uma oportunidade para deslocamentos nos modos de enxergar e imaginar realidades.

Em Março, em função da pandemia Covid-19, as portas físicas das unidades do Sesc no Estado de São Paulo foram fechadas e outras possibilidades de contato foram construídas.
 

Mas o que pode uma exposição de portas fechadas?
E o que pode uma mediação à distância?



“Moradas” por Bruna Marassato, educadora da exposição Sala de Estar

 


“Totem Afetivo” por Joice Trujillo, educadora da exposição Sala de Estar



Neste contexto intrincado e extremo em que isolamento social e  longa permanência em um espaço único são recomendados, pensar sobre a casa evoca pensar também em sua ausência, e pensar sobre isolamento também nos faz repensar as presenças, e novamente o “sentir-se em casa” é uma pergunta marcada por fissuras tão profundas como aquelas que aparecem em paredes antigas em que algumas pessoas vêem certa beleza, outras vêem como um incômodo irreparável, outras podem e tentam restituir com cimento e outras ainda percebem a infiltração ou desmoronamento chegando.

Sendo múltiplas as realidades e assumindo que  presença física e um local que convida e permite a fruição não são substituíveis: como criar canais de troca, considerando que o espaço e o tempo disponíveis interferem diretamente na experiência que um indivíduo pode ter? Que significado teria a relação de uma pessoa com a própria casa?

Tentando não correr o risco de idealizar as possibilidades das plataformas digitais, ou recorrer a um extremismo otimista do momento complexo que vivemos ou até assumir a presunção de uma resposta certa, a casa enquanto ateliê nos aparece como uma lâmpada acesa apontando um caminho entre cômodos, algum lampejo familiar entre passos incertos.
As linguagens e experiências artísticas que carregam em sua gênese a capacidade de imaginar e discursar sobre mundos podem cultivar um olhar atento para o que do cotidiano pode revelar uma poética, seja discursando sobre temas prazerosos ou doloridos, abrindo espaço para perguntas e investigações a partir da própria casa em uma lupa que também aponta para a própria vida.


“Observatório Criativo” por Fabrício Urbaneja,
educador da exposição Sala de Estar



“(...) especialmente nesse período de isolamento, a casa tornou-se lugar de abrigo, esconderijo.  Lugar onde a camuflagem corpo-casa poderia ser uma possibilidade de sobrevivência em meio ao caos. Caos da pandemia, mas também o caos da maternidade. (...) buscando refúgio nas pequenas frestas e vazios dos objetos.”





“Das coisas que descobrimos em casa há um local em que o sol bate quase o dia todo, e quando o tempo está claro colocamos todas as nossas roupas de cama para corar, aquecer, perfumar. Sobrepostos, arrumamos cobertores e travesseiros que formaram um totem simbólico do aconchego que tentamos nos proporcionar nestes dias.”


Alessandra Vetorazzi participou do “Totem Afetivo”



“Ontem ao entrar em uma loja me deparei com um tapetinho de retalhos.
Abri um sorriso ao instante e vieram uma série de lembranças da casa da minha avó costureira, que tinha uns quantos distribuidos pela casa, que fazia das sobras das encomendas. (...) pensei em como o tempo, a distância e o contato com outra cultura faz com que a gente mude a relação que temos com os objetos.”


“Totem Afetivo” de Roberta Esteves
 


“Autorretrato Mobiliário” de Roberta Esteves

 

“Se muitos morrem, morrem porque alguns querem/assumem essas mortes.
A morte de alguns se dá em virtude da organização lucrativa da nossa sociedade.
Então surge a pergunta: você é da classe dos que morrem ou dos que lucram?”
 


“Autorretrato mobiliário” de Hugo Ribeiro

 

“Esses desafios com a nossa morada fizeram perceber que eu tinha uma cegueira que não me permitia vislumbrar os cantos esquecidos, principalmente aqueles dentro de mim.”


“Observatório criativo” de Maitê Andorra

 

Ely Costa participou do “Autorretrato Mobiliário”



“Saber que não se está só é muito poderoso”


Bruna Marassato participou do “Observatório Criativo”





Valdo Rechelo participou do “Observatório Criativo”
 


A vivência entre uma ou mais pessoas, ou entre pessoas e casas, ou entre pessoas e  experiências ou obras de arte não diz sobre harmonia ou concordâncias, tampouco sobre técnica e excelência, mas sobre a brecha que se abre para que do encontro seja possível experimentar trajetos e conhecer, imaginar e produzir realidades. Talvez seja essa uma das respostas possíveis para que ainda seja relevante coletar vestígios artísticos e de convívio e, com alguma sorte, fazer dessa possibilidade o clarão para tempos sombrios.



Acesse essas e outras representações visuais nos Destaques do Instagram @sescsaocaetano

**Jane Eyre Piego é antropóloga e animadora cultural
atuando na equipe de programação do Sesc São Caetano