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A menina que passa
Em 1962, na boate carioca Au Bon Gourmet, foi realizado o show Um Encontro, com Tom Jobim, Vinicius de Moraes, João Gilberto e Os Cariocas. Ali, o público de menos de 50 pessoas por noite testemunhou o nascimento de uma obra-prima da bossa nova, “Garota de Ipanema”. | Reprodução
Com letra de Vinicius de Moraes e música de Tom Jobim, “Garota de Ipanema” é uma das músicas mais conhecidas e gravadas no mundo. Dizem até que é a segunda mais registrada em disco, depois de “Yesterday”, dos Beatles.
O samba que se tornou um dos marcos internacionais da bossa nova foi inspirada pelas idas e vindas da jovem Heloísa Eneida Menezes Pais Pinto pelo cruzamento das ruas Prudente de Morais (hoje Rua Vinicius de Moraes) e Montenegro, onde a menina morava e onde também ficava o bar Veloso, posto de observação cotidiana de Tom e Vinicius. “E lá ia ela toda linda, a garota de Ipanema, desenvolvendo no percurso a geometria espacial de seu balanceio quase samba. (…) Para ela fizemos, com todo o respeito e mudo encantamento, o samba que a colocou nas manchetes do mundo inteiro e fez da nossa querida Ipanema uma palavra mágica para os ouvintes estrangeiros”, afirmou Vinicius para a revista Manchete em 1965, ano em que revelou para Helô Pinheiro - nome de casada de Heloísa Eneida - que ela havia sido a fonte de inspiração da dupla.
A inspiração nascida no bar ganhou forma em dois endereços: na Rua Barão da Torre, no Rio de Janeiro, onde Tom criou ao piano a melodia, e em Petrópolis, onde Vinicius de Moraes fez a letra, na verdade, fez duas letras.
A primeira versão se chamava “A menina que passa:
“Vinha cansado de tudo
De tantos caminhos
Tão sem poesia
Tão sem passarinhos
Com medo da vida
Com medo do amor
Quando na tarde vazia
Tão linda no espaço
Eu vi a menina
Que vinha num passo
Cheia de balanço
A caminho do mar”.
A desilusão do observador pela “menina que passa” some na primeira parte da versão seguinte, que concentra suas linhas para adjetivar o motivo de seu encanto. Acrescenta ainda “Ipanema”, uma geolocalização crucial para a internacionalização da praia da Zona Sul carioca e da bossa nova.
“Olha que coisa mais linda
Mais cheia de graça
É ela, menina
Que vem e que passa
Num doce balanço
A caminho do mar
Moça do corpo dourado
Do sol de Ipanema
O seu balançado é mais que um poema
É a coisa mais linda que eu já vi passar”
A composição ganha acento melancólico quando o espectador reconhece sua solidão:
“Ah, por que estou tão sozinho?
Ah, por que tudo é tão triste?
Ah, a beleza que existe
A beleza que não é só minha
Que também passa sozinha”.
Mas sua dor diminui ao se deparar com os “balanceios que vão alimentar seu amor utópico”.
Ah, se ela soubesse
Que quando ela passa
O mundo inteirinho se enche de graça
E fica mais lindo
Por causa do amor”.
Segundo Zuza Homem de Mello e Jairo Severiano no livro A canção no tempo – Vol. 2, a composição deveria integrar a comédia “Blimp”, que nunca saiu da cabeça de Vinicius. No entanto, foi apresentada ao público em 2 de agosto de 1962 no show Um Encontro, dirigido por Aloysio de Oliveira, que reuniu a alta cúpula da bossa nova, Tom Jobim, Vinicius de Moraes, João Gilberto e Os Cariocas na boate Au Bon Gourmet, em Copacabana, no Rio de Janeiro, em temporada de 45 dias.
Como toda obra de sucesso (ou com cheiro de...), sobram histórias e protagonistas. Uma delas é sobre as primeiras gravações da música. O cantor Pery Ribeiro (1937-2012), filho de Dalva de Oliveira e Herivelto Martins, foi um dos privilegiados espectadores do show na Au Bon Gourmet. Como “testemunha ocular da história”, Pery levou ao maestro Lyrio Panicalli uma gravação amadora do show, que o estimulou a levá-la ao disco. Saiu no LP “Pery É Todo Bossa”, lançado pela Odeon em 1963. Mas Pery foi um dos primeiros, porque o álbum “Avanço” (Philips), o segundo do Tamba Trio, grupo instrumental-vocal formado pelo pianista Luiz Eça, pelo baixista e soprista Bebeto Castilho e pelo baterista Hélcio Milito, emparelhou na pole position. A faixa de abertura é “Garota de Ipanema”, seguida de outra versão, “Mas que nada”, de Jorge Ben.
Depois de Pery Ribeiro e Tamba Trio, o samba ganha novas gravações, incluindo de um de seus autores, Tom Jobim, também em 1963. O álbum The composer of Desafinado plays (Odeon) dá as boas-vindas com “The girl from Ipanema” em versão instrumental, tornando-se uma espécie de tutorial do minimalismo orquestral da bossa nova.
Em 1964, outro capítulo determinante na história internacional da “Garota de Ipanema”: é lançado o álbum “Getz/Gilberto”, pela Verve, de João Gilberto e do saxofonista de cool jazz Stan Getz. Tanto o disco quanto o single vocalizado por Astrud Gilberto, então esposa de João Gilberto, vende milhões de cópias e conquista alguns Grammy.
Vídeo Astrud Gilberto & Stan Getz, 1964
A poesia original de Vinicius perde sua ginga e ganha outros contornos na versão do norte-americano Norman Gimbel (1927-2018), que passa a assinar a autoria de “The Girl from Ipanema”.
Tall and tan and young and lovely
The girl from Ipanema goes walkin'
And when she passes, each one she passes goes, ah!
When she walks, she's like a samba
That swings so cool and sways so gentle
That when she passes, each one she passes goes, ah!
Ohh, but I watch her so sadly
How can I tell her I love her?
Yes I would give his heart gladly
But each day, when she walks to the sea
She looks straight ahead, not at him
Tall and tan and young and lovely
The girl from Ipanema goes walkin'
And when she passes, I smile but she doesn't see
Ohh, but I see her so sadly
How can I tell her I love her?
Yes I would give his heart gladly
But each day, when she walks to the sea
She looks straight ahead, not at him
Tall and tan and young and lovely
The girl from Ipanema goes walkin'
And when she passes, I smile but she doesn't see
She just doesn't see, no she doesn't see
But she doesn't see, she doesn't see
No, she doesn't see
Período de ouro para a bossa nova e, especialmente para Tom Jobim, que passa a residir nos Estados Unidos, a década de 1960 assiste à gravação do disco Francis Albert Sinatra/Antonio Carlos Jobim (Reprise, 1967). Com 10 faixas orquestradas pelo maestro alemão Claus Ogerman, sete delas de autoria do músico carioca, o vinil abre com os acordes ao violão de Tom Jobim para Frank Sinatra (1915-1998) eternizar sua versão de “The Girl from Ipanema”.
Vídeo Frank Sinatra & Tom Jobim
Nesta segunda edição, a playlist Mais do mesmo reúne tanto a considerada primeira gravação de “Garota de Ipanema”, com Pery Ribeiro, como outras tantas versões que esbanjam sotaques, ritmos, estilos e arranjos para todos os gostos.
Um registro raro e bem humorado do show Au Bon Gourmet, que revelou a obra ao seleto público da boate, abre essa seleção musical; seguem interpretações do grupo vocal Os Cariocas, de Tom Jobim em seu primeiro disco gringo (1963), e de João Gilberto com Stan Getz.
Neste desfile de um tema só, o jazz vocal e aveludado predomina, de Ella Fitzgerald e Nat King Cole a John Pizzarelli; representantes do pop como Amy Winehouse, Ira! e Mundo Livre S/A acotovelam-se para garantirem suas assinaturas; Elis Regina e Tim Maia profanam com moderação; e os egressos do samba-jazz e radicados nos Estados Unidos Walter Wanderley (1932-1986) e Sérgio Mendes (1941) mostram seus artigos de exportação. Há ainda Cher, Chriz Montez, Oscar Peterson, uma versão “festa-baile” de Ray Conniff e uma italiana com Bruno Martino. Termina com Sinatra e Tom.
Boa audição!
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