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A intensidade de Eliane Dias
Quando assumiu a gestão da carreira do Racionais MC’s, principal grupo de rap do país, Eliane Dias imaginou que em três anos já teria tudo organizado. “Doce ilusão. Tudo que envolve o Racionais exige muito”, conta. Ainda bem que força e determinação parecem não faltar para a empresária, que se define como uma mulher “ousada” quando recorda momentos marcantes à frente da produtora Boogie Naipe.
No dia a dia, seus desafios vão muito além da leitura de contratos e do desenvolvimento de projetos, atividades nas quais já acumulava experiência, como advogada e coordenadora da SOS Racismo na Assembleia Legislativa de São Paulo. Eliane se envolve nos detalhes dos shows – desde questões práticas até decisões estratégicas –, busca parcerias, negocia com empresários, acompanha eventos, ao mesmo tempo em que luta contra o racismo e estimula a empatia entre as mulheres. “Temos que nos ajudar da mesma forma que os homens se ajudam.”
Com essa visão, Eliane preparou o curso “Produção cultural e gestão no Hip Hop para mulheres”, para o projeto SP Território Black, do Sesc Vila Mariana. Na entrevista a seguir, ela fala sobre alguns temas abordados nos encontros, defende a participação feminina no Hip Hop, compartilha dificuldades e conquistas de sua rotina de trabalho.
Você foi convidada para integrar a programação do projeto São Paulo Território Black, do Sesc Vila Mariana, que traça um breve panorama da música negra dos bailes e das ruas da cidade, desde os anos 1970 até a atualidade. Como você vê essa iniciativa?
Para nós, negros, tudo tem acontecido muito devagar até chegar no estágio em que estamos hoje. E eu tenho certeza que daqui em diante vai ser melhor. As minhas lembranças daquela época são muito boas, de mais união, de uma cumplicidade maior. A gente tem que ficar mais perto, ficar junto, para evitar conflitos de informação. A tecnologia proporcionou praticidade e agilidade, mas vemos que isso não trouxe um bom resultado para nós. Qualquer coisa para valorizar, informar, ampliar a cultura Black, Hip Hop, e para tratar de pautas periféricas e não periféricas, no sentido de gênero e de raça, é de extrema importância.
Como surgiu a produtora Boogie Naipe?
O Racionais atuou mais de 20 anos de maneira informal, como acontece com a maioria dos artistas, até que alcancem certa visibilidade. O grupo fazia tudo sozinho. Desde 2004, quando eu estava estudando Direito Empresarial, queria trabalhar com eles, mas acharam que não era o momento. A princípio, eu fui contratada para trabalhar com o Mano Brown, para alavancar a sua marca e o lançamento de seu disco solo, Boogie Naipe. Mas o Racionais tinha muita coisa para organizar e, em 2012, eles me convidaram.
Eu trouxe comigo essa organização que o Direito me obriga a ter. Não saberia trabalhar de outra forma, porque estudei para isso. Achei que em 2015, no máximo 2016, já teria organizado 25 anos de carreira. Doce ilusão. Tudo que envolve o Racionais exige muito.
O Racionais sempre deixou claro o seu posicionamento de fazer música para a periferia. A localização da produtora no Capão Redondo, zona sul de São Paulo, também é parte dessa estratégia?
A primeira pessoa que eu recebi aqui foi o representante de uma distribuidora de música internacional – ele veio direto da Califórnia (EUA) para o Capão Redondo. Eu gosto que venham, acho importante que tenham esse entendimento. A gente estava conversando e o carro do gás passou, às vezes, estou trabalhando e vejo um helicóptero da polícia. Se o escritório fosse em outro lugar, não teria essa interação com a periferia. Já pensei em sair pelo fato de existir certa resistência de algumas pessoas, que não querem abrir mão do conforto ou sair de seu próprio mundo – e é por isso que estamos em um retrocesso, atualmente. Mas aqui estou bem localizada, tem bancos, restaurantes, metrô. E o principal é a qualidade de vida, pego menos trânsito, meus funcionários levam 15 minutos para chegar em casa.
Qual o cenário para as mulheres que pretendem atuar na produção cultural e gestão no Hip Hop?
As pessoas que trabalham com eventos são corajosas, eu gosto muito. Fazer um show envolve vários aspectos, é preciso pensar no local, na data, no valor, na divulgação, convencer o artista, preparar o show, pensar no público, no trânsito, no clima. Uma chuva pode acabar com uma festa, uma pessoa desmaiada pode acabar com um nome.
Para as mulheres, os desafios começam no posicionamento. Ainda acham que podemos ser convencidas com um elogio e fico irritada quando fazem isso comigo. O machismo ainda reverbera. Depois, o volume de obrigações para uma mulher empreendedora é cruel, pois só somamos responsabilidades. Acho desumano darmos conta de tudo sozinhas. A produção é um trabalho incessante, todos os dias surgem propostas relacionadas ao Racionais, eu tenho que estar bem para avaliar, tomar decisões...
Ainda é complicado chegar diante do empresário de uma grande marca sendo mulher e preta. Antes de tudo, porque os círculos do setor cultural são muito fechados, é difícil ter acesso aos contatos. Quando eu passo pela porta, o racismo e a questão de gênero impactam: “Puxa vida, você que é empresária do Racionais?”, mas depois que mostro que sou qualificada para fazer o trabalho que me proponho, esse entrave é superado. Por isso é importante estudar, falar inglês. Eu pedi para todos que trabalham comigo estudarem, não quero ser egoísta, saber mais que os outros e ter ao meu redor gente que não entende nada. Se todo mundo estudar, fica mais fácil. Não compactuo com uma ideia de Brasil em que o povo não estude. Não é com violência, com grosseria, que vamos conseguir ocupar os espaços. Parece que as pessoas estão com um pensamento de que, com brutalidade, o outro vai recuar e elas vão conseguir avançar. Não é assim.
Desde que você começou a atuar no Hip Hop, tem buscado trabalhar com mais mulheres?
Eu ainda tento e vou sempre tentar trazer mulheres do universo Hip Hop. Temos que nos ajudar da mesma forma que os homens se ajudam. Já reparou na cumplicidade que eles têm uns com os outros, em tudo? Eu acharia desonesto trabalhar com tantos homens e não trazer nenhuma mulher, aí comecei a exigir a presença delas em meus eventos. Às vezes não consigo, porque a festa não é só minha, mas se eu tiver uma vírgula de força, eu continuo colocando mulheres. Agora, imagina o quanto é complicado estar em uma mesa só com empresários e dizer que quero colocar uma mulher na abertura de um show do Racionais. Os caras olham para mim e falam: “Você está nessa, Eliane?”. E eu estou, é uma bandeira minha, mesmo que tentem me deixar em uma situação difícil, como se o fato de querer trazer uma mulher me diminuísse como empresária. Vamos sair em turnê com o Racionais em 2019, passar por 10 Estados, com uma equipe de 30 pessoas. Eu sou a responsável e não posso querer uma mulher, uma cantora, uma DJ? A gente tem que ter essa empatia. A mulher é tão poderosa, tem uma força tão grande, mas andar sozinha é complicado. As militantes têm um chamado que diz: “Companheira me ajude/ Eu não posso andar só/ Eu sozinha ando bem/ Mas com você ando melhor”.
Com o grupo isso já é um consenso?
Eu nem pergunto. Não me interessa. Não vou perguntar, porque quando você pede uma autorização a pessoa se sente no direito de dizer sim ou não. Eu não estou pedindo autorização, estou fazendo. O importante é tudo estar de acordo quando eles entrarem no palco. O que acontece antes, não tem que ser questionado. Mas chateia...
Até hoje, qual foi o seu maior desafio como empresária da Boogie Naipe?
O show da Virada Cultural em 2013, para 100 mil pessoas, foi o mais difícil que eu já eu fiz com o Racionais e me deu a sensação de que eu poderia fazer qualquer coisa. O grupo estava sem se apresentar na Virada desde 2007 e foi uma luta, porque o responsável queria colocar o Batalhão de Choque da Polícia Militar de São Paulo e eu não queria. No final das contas, chegamos a um denominador comum, o Choque ficou atrás de um tapume e o público não viu. A minha estratégia foi usar um fator surpresa. O público esperava que o show atrasasse, já que o Racionais tinha fama de atrasar uma, duas horas. Para que tudo corresse bem, eu só adiantei o show meia hora. Assim que ele terminou, o carro do Mano Brown estava posicionado para sair.
Diante dos riscos, eu fiquei mal, sem dormir, mas sabia perfeitamente o que estava fazendo. O público não podia ser provocado; a conexão entre o fã do Racionais e o grupo é inexplicável, quando eles estão olho no olho, nada de ruim acontece. E foi do jeito que eu imaginei, deu tudo certinho. Isso me deixou muito realizada. Quando eu vejo, falo para mim mesma: “Jesus, você foi ousada hein, mulher?!”. A intenção era mostrar que o Racionais não havia feito nada de errado naquele show na Praça da Sé [na Virada Cultural de 2007] e que nós da periferia não somos bicho. Os responsáveis pela segurança não conseguem entender isso, são qualificados de uma forma muito antiquada e atrasada. Eles olham para uma mulher preta e veem um E.T., e eu não sou um E.T., é que eu estou em 2019 e eles estão em 1999.
Como você vê a profissionalização dos artistas de Rap?
Era uma questão de tempo. Mesmo sendo uma cultura da periferia, a profissionalização era necessária para ocupar outros espaços, trabalhar com editais, com plataformas digitais, e conseguir sustentar famílias com a nossa cultura. A periferia não é só mão de obra, aqui tem Arte. Mas para que isso apareça, é preciso ter pessoas como eu, que fazem a parte executiva, enquanto o artista cria.