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Esporte em tempos de pandemia: memórias, incertezas e novos paradigmas

Por Maria Clara Soares Pontoglio*

A pandemia de Covid-19 vem transformando vidas e rotinas no Brasil e no mundo. A quarentena imposta às pessoas como uma das medidas para desacelerar o contágio desse novo vírus impôs a uma parcela da população novas formas de trabalho, de relacionamentos e de fruição, estimulando ao máximo a conexão com o ambiente digital, seus limites e possibilidades; por outro lado, uma grande parcela da população não consegue acessar serviços, conteúdos  e ações disponibilizados mediante  o uso da internet, vivenciando o isolamento físico e virtual. 

O período da quarentena interrompeu muitas atividades consideradas como não essenciais nesse momento; acentuou as dificuldades que a economia brasileira e de outros países já passavam, a fragilidade dos empregos e as desigualdades socioeconômicas; demonstrou o despreparo dos sistemas de saúde e de vários governos para lidar com a situação. Nessa realidade que ainda se desdobra, a maior parte das atividades do esporte profissional e de práticas esportivas de lazer também foram suspensas: treinos, partidas e competições, os quais geram aglomerações e colocam pessoas em contato físico, como no caso dos jogadores de modalidades coletivas, das torcidas e treinos em grupos, por exemplo. Assim, a cada dia, inquietações e curiosidades acerca do contexto esportivo me instigaram (e ainda instigam) a pensar e procurar por hipóteses ou explicações. Neste texto, compartilho com vocês parte dos meus questionamentos e reflexões sobre o esporte.

- Por que exibir na TV campeonatos e torneios esportivos de anos anteriores?
- O que se perde com o adiamento dos Jogos Olímpicos e Paralímpicos de Tóquio?
- Diante desse cenário da paralisação do esporte profissional, haverá influência na prática esportiva de lazer? O esporte perderá praticantes e deixará de ganhar novos adeptos?
- Com a suspensão dos campeonatos e torneios profissionais, equipes esportivas foram desmanteladas. Como será a absorção dos atletas que estão sem equipe para atuar? O que acontecerá com o atleta profissional que não consegue se manter apenas com esporte? A pandemia e as condições por ela impostas abreviarão carreiras esportivas?
- E o esporte eletrônico, também conhecido como e-sport, ganhou novos adeptos nesse período? Sofreu da mesma forma os efeitos da pandemia?
- O que fazer para não perder o vínculo e o gosto pelo esporte?
- Quais alternativas foram criadas para manter a motivação de atletas profissionais e praticantes de esporte?
- Como será possível o retorno à prática esportiva, seja de lazer ou profissional?

Com a suspensão da maior parte das ações do esporte profissional, as emissoras esportivas passaram a exibir antigas competições, como Jogos Olímpicos, Copas do Mundo de Futebol Masculino, campeonatos realizados em anos anteriores e documentários esportivos. Nesse período, tive a percepção de que estamos vivendo de memórias esportivas, sem poder desfrutar da imprevisibilidade muitas vezes presente no esporte, que é uma característica muito atrativa para praticantes e espectadores, e de outras sensações. Embora exista a perda da imprevisibilidade dos resultados, assistir a partidas de competições já encerradas podem relembrar a atuação de grandes atletas que já não competem mais e nos fazer revisitar emoções e afetos. As reprises esportivas podem ser também uma forma de se manter a chama do esporte acesa e preencher vazios provocados pela pandemia.

O adiamento dos Jogos Olímpicos e Paralímpicos de Tóquio foi uma medida necessária frente ao novo contexto provocado pelo coronavírus. Com esse adiamento e a suspensão de outras competições esportivas profissionais, além das perdas financeiras de patrocinadores e realizadores, observo a perda de oportunidade para se formar novos ídolos e fomentar a prática esportiva; talvez, neste momento, além dos atuais praticantes, o esporte possa ter perdido novos adeptos. Mais uma hipótese que vislumbro é a possível inadequação da atual oferta de práticas esportivas em relação à demanda ou o acesso que ainda não é democratizado. Em relação aos atletas e paratletas, vejo o surgimento de um vão (gap) nas suas carreiras, o que pode gerar ansiedade e angústia frente às incertezas que os cercam.

Com a necessidade da quarentena, equipes perderam patrocinadores e foram desfeitas. Nesse momento, há também muitos atletas desempregados e não há certeza se haverá contratos de trabalho e times para todos e todas quando as atividades esportivas profissionais retornarem. Com a intenção de minimizar as dificuldades financeiras, nos últimos meses, fundos foram criados por organizações e federações esportivas, como de tiro com arco, de futebol e de tênis. Outra medida que se manteve e acredito que está sendo de grande importância é o Programa Bolsa Atleta, que consiste em um auxílio financeiro para apoiar o desenvolvimento de atletas com potencial para representar o Brasil em competições esportivas relevantes.

Embora algumas ações de apoio tenham sido realizadas, nem todos os atletas foram contemplados, como no caso de jogadores de futebol de divisões secundárias que podem ter suas carreiras abreviadas pelas condições impostas pela pandemia. Outra possibilidade que foi cogitada pelos atletas de futebol em situações financeiras difíceis foi o auxílio emergencial liberado pelo governo brasileiro, mas a categoria dificilmente se encaixa nos critérios para o recebimento desse auxílio. A partir das situações colocadas, observo que os efeitos da pandemia atingem os atletas e outros atores do esporte profissional (técnicos, auxiliares, integrantes de equipes como massagistas, etc.) de modos distintos, reproduzindo também desigualdades da sociedade.

Tratando-se do que pode ser chamado de uma vertente do esporte, o esporte eletrônico (e-sport), este sofreu efeitos positivos com a pandemia, como um maior número de praticantes e investimentos financeiros nesse campo. Isolados em casa, momento propício para a prática de jogos online, os e-sports têm mostrado seu valor no entretenimento, com a reunião de milhares de jogadores, transmissão de lives e campanhas de doações organizadas no universo dos games. Somando-se aos pontos mencionados, os e-sports podem ser ainda uma maneira de proporcionar as sensações que o esporte original provoca. Assim, o esporte eletrônico parece trilhar seu caminho de consolidação (e talvez de legitimação) sem sofrer grandes impactos da pandemia. Mais uma modalidade que também está sendo pouco afetada pela pandemia da Covid-19 é o xadrez, que têm intensificado as suas ações digitais, realizando até campeonatos internacionais como a Copa Online das Nações.

Além das reprises de competições e da prática esportiva individual, observei modos alternativos de se manter a motivação e o interesse de atletas e de praticantes amadores no esporte. Atualmente, muitas pessoas desbravam como viver em isolamento social; empresas e instituições como o Sesc (Serviço Social do Comércio), relacionadas à prática esportiva e de exercícios, buscam novas formas de atender o público e realizar suas ações em meio virtual; pesquisas surgem para entender os novos hábitos e rotinas das pessoas; competições virtuais, como a que foi promovida pela Federação Internacional de Pentatlo Moderno, e corridas virtuais são criadas; realização de lives para ouvir a experiência dos atletas e para se exercitar com eles; torneio de modalidades individuais, com público assistindo em carros, como os antigos cinemas “drive in”; criação de aplicativo que conecta equipes esportivas a atletas e a profissionais que integram comissões técnicas, como preparadores físicos e fisioterapeutas. Percebo, portanto, que as ações mencionadas auxiliam a transpor esse momento de isolamento social. O desejo e a esperança de retomar a prática esportiva interrompida pela pandemia persiste e se fortalece também.

A retomada da prática esportiva em ambientes compartilhados com mais pessoas e em grupos será possível, mas deverá acontecer sob muitos cuidados, conforme os protocolos pensados pela OMS (Organização Mundial da Saúde), COI (Comitê Olímpico Internacional), federações esportivas, entre outras instituições e organizações. Diminuição de integrantes de comissões técnicas presentes em jogos; partidas sem espectadores ou com assentos marcados para cumprir distanciamento seguro; sem cumprimentos físicos entre os atletas; técnicos usando máscara facial durante as disputas; treinos em turnos variados para atender grupos pequenos de atletas são algumas medidas referenciadas nos protocolos. Modalidades esportivas individuais e praticadas ao ar livre parecem oferecer menores riscos para o contágio da Covid-19; já as modalidades esportivas coletivas demonstram maior complexidade para o retorno, devido ao contato físico e ao compartilhamento de materiais. Junto aos protocolos, o aspecto que parece ser o principal para o retorno de muitas ações do esporte é o controle da pandemia. Sem o “timing” correto, os praticantes, atletas e demais envolvidos podem se arriscar indevidamente.

Tendo em vista os pontos abordados, é possível dizer que os paradigmas do esporte foram afetados pelo coronavírus. Já existem questionamentos sobre os protocolos e sobre as mudanças que o esporte vem sofrendo e sofrerá, se ele será descaracterizado, se ainda poderá ser chamado de “esporte”. Após esses desdobramentos, penso que ainda teremos o esporte, mas um esporte possível frente às condições impostas a ele. Como fenômeno sociocultural que é, oriundo da criação humana, o esporte com toda a sua plasticidade atravessará o período da pandemia em busca da nova “normalidade” e de uma nova existência.

Maria Clara Soares Pontoglio é monitora de esportes no Sesc Birigui. Licenciada e graduada em Educação Física pela UFSCar (São Carlos) e USP (Ribeirão Preto); mestra em Educação pela USP (Ribeirão Preto); tem especialização lato sensu em Residência Multiprofissional em Saúde da Família e Comunidade pela UFSCar (São Carlos) e cursa a pós-graduação lato sensu em Gestão Cultural realizada pelo Senac.